Lembro bem de quando a Feicoop, a hoje Feira Internacional do Cooperativismo começou em Santa Maria, nos idos dos anos 90. Em uma das primeiras edições da Feira, chovia bastante na cidade, e o cantor e compositor Antônio Gringo, um dos símbolos do evento desde o seu surgimento, tinha que realizar a sua apresentação na abertura da programação. Como na época, a estrutura existente era bastante precária, eu não tive dúvida: empunhei um guarda-chuva e protegi o Gringo e o seu violão do “aguaceiro” até o final da canções. Meu braço amorteceu, a mão ficou dolorida e a chuva fria respingava em minha nuca. Mas me senti realizado com a nobre missão que garantiu a apresentação de Gringo, que estava ali sem cachê, apenas com a sua consciência social de que todos podemos, em maior ou menor grau, fazer algo pelo coletivo.
Faço questão de contar isso, pois muita gente que não viveu esse período imagina que a Feicoop já surgiu com a estrutura, com os pavilhões e com o número de visitantes que possui atualmente. Nada disso. Essa iniciativa pra lá de ousada, concebida pelo saudoso Dom Ivo Lorscheiter, nasceu no meio do “barro” e envolta por um clima local que misturava, por parte das autoridades da época, desconfiança e contrariedade, já que era um evento voltado a setores que habitavam a base da pirâmide social santa-mariense.
Pois, passadas mais de duas décadas do episódio do “guarda-chuva do Gringo”, a Feicoop superou com muito vigor o preconceito e o tímido apoio e tornou-se simplesmente o maior evento de economia solidária do Rio Grande do Sul, do Brasil e da América Latina. Tornou-se também o evento – independente de estilo ou formato – que mais atrai visitantes para Santa Maria. Em 2018, o público foi de 300 mil pessoas, de 25 países.
Eu tenho muito orgulho de ser um entusiasta dessa proposta – que tem como cerne a organização, a solidariedade e o associativismo de trabalhadores – desde o seu marco zero. De pronto entendi, como cidadão e como gestor público, que o apoio municipal deve mirar resultados além do curto prazo e além do balancete contábil. Como não ser favorável a uma ideia que visa gerar emprego e renda para pessoas que possuem potencial – no artesanato, na produção de alimentos ou na agricultura familiar -, mas que muitas vezes não encontram ambientes para labutar.
Em suma, a Feicoop é um evento “ganha-ganha”, pois aquece a economia, gera empregos, promove debates de fôlego sobre temas sociais e econômicos e, além disso, divulga e eleva o nome de Santa Maria. Que cidade do Brasil e do mundo não gostaria de poder, todos os anos, sediar um evento como esse perfil?
Por ter essa avaliação a respeito da obra assinada por Dom Ivo e continuada pela Irmã Lourdes Dill, encaro com muita preocupação a notícia de que a 26ª edição da Feicoop, prevista para ocorrer entre 11 a 14 de julho desse ano, corre o risco de não ter mais sequência por falta de apoio e incentivo.
Enfaticamente, discordo da posição de quem acha que a economia solidária não merece apoio público. No país, hoje, há mais de 20 mil empreendimentos solidários e cerca de 2,5 milhões de trabalhadores e trabalhadoras engajados na chamada “nova economia”. Será que essa gama toda de gente não merece, minimamente, receber algum tipo de incentivo para, ao fim e ao cabo, gerar emprego, gerar renda e gerar mais dignidade nas comunidades onde atuam? Será que o retorno social não compensa?
No Brasil atual, infelizmente, quem menos precisa de apoio governamental tem preferência. Só na Câmara Federal, tramitam mais de 30 projetos que concedem incentivos ou perdoam dívidas privadas num montante que chega R$ 238 bilhões até o ano que vem. Aqui, na aldeia gaúcha, os incentivos fiscais a grande grupos beiram a casa dos R$ 9 BI. Somente um único empresário – que figura na lista dos mais ricos do país – levou R$ 343,4 milhões do caixa do Estado para criar a “bagatela” de cinco novos empregos.
São essas injustiças que alimentam o mecanismo perverso que está consolidado no nosso país, o qual rotula os pequenos negócios de cunho familiar como “gastos”, “desperdícios” ou “exemplos de paternalismo” e classifica o apoio a megaempresários e a grandes proprietário de terra como “política de desenvolvimento”.
Faz bem, nesses tempos adversos, recuperar as palavras do escritor uruguaio Eduardo Galeano, que soube melhor do que ninguém definir o que é utopia. Para ele, “a utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”.
Tenho absoluta certeza que a caminhada da Feicoop e da economia solidária não vai parar agora. Quem emergiu do barro, da chuva e do vento não desistirá de buscar a utopia e de enfrentar o maior mal do Brasil: a desigualdade social.