Artigo – As palavras de Felipe Neto merecem atenção

Por VALDECI OLIVEIRA

Quando jovem, me calou fundo um poema feito por um dramaturgo alemão cujo nome, inicialmente, era difícil de memorizar e de pronunciar. O poema trazia palavras simples, porém duras, que descreviam um sujeito analfabeto, não no sentido gramatical nem no sentido funcional. Esse poema representou muito não só para a minha geração. Mas com o tempo ele próprio foi sendo ignorado, esquecido. O poema fala do analfabeto político, descreve aquele ou aquela que ignora que o custo de vida depende justamente das decisões políticas. É um poema que faz pensar e que dialoga íntima e diretamente com a existência e a condição humanas.

Com o tempo, também aprendi que uma das essências da política, e aqui não me refiro especificamente a política partidária, diz que devemos estar sempre abertos a mudarmos de posição. Falo isso para contextualizar sobre o que se tornou um dos assuntos mais comentados nas redes sociais e na imprensa, nessa semana: a entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, do youtuber Felipe Neto, um jovem que se tornou, anos atrás, nacionalmente conhecido (e seguido) por opinar sobre temas variados, que iam da cor do seu cabelo às roupas de celebridades. Tudo sempre carregado com certo histrionismo, humor e por uma crítica por vezes dura, injusta.

Na entrevista, entre os vários temas abordados, Felipe fez uma espécie de mea-culpa, em que reconheceu o que chamou de seu papel no impeachment da presidenta Dilma, descrito e reconhecido, agora por ele, como um golpe. Um processo que resultou, em última análise, na ascensão ao poder de segmentos obscurantistas e autoritários.  Segundo o youtuber, sua postura no período, favorável ao afastamento da presidente, foi “por falta de estudo e leitura”. E o fez destacando estar longe de ser um defensor do PT.

Nos últimos quatro anos, Felipe Neto anos vem usando sua imagem – antes muito criticada por conta dos arroubos de arrogância – para “afastar o máximo possível essa possibilidade de opressão” tão explícita no cotidiano político brasileiro, mais especificamente pelos atos e omissões do presidente da República e suas milícias digitais. Só no seu canal na plataforma digital do Youtube, Felipe soma algo perto de 38 milhões de pessoas inscritas. Outros milhões em redes sociais como Facebook e Instagram.

Na mesma entrevista, Felipe foi além, trazendo à tona suas impressões quanto aos rumos do Brasil, que vem sendo conduzido por uma espécie de soma entre o messianismo charlatão, o nacionalismo canhestro e o fundamentalismo religioso. Num passado recente, Felipe era, pelo menos para mim, mais conhecido como um jovem que utilizava seus canais para, de forma infantilizada, incentivar o consumismo e destacar futilidades. Hoje os tempos são outros. “A política tem que viver de convivência, resolvendo tudo coletivamente”, disse Felipe à entrevistadora do programa, talvez sem se dar conta de que sua fala é permeada da mais profunda teoria que inclui o fazer político como a arte de construir consensos.

O youtuber também tem defendido que colegas seus se posicionem politicamente sobre o que tem acontecido no Brasil. Logo no início do Roda Viva, Felipe Neto lascou: “Já não dá mais para ficar calado. Qualquer pessoa que esteja calada neste momento e tenha influência com uma pessoa ou com cinco milhões já é conivente com o que está acontecendo”.

Ao refletir, reconsiderar posturas, se posicionar publicamente, Felipe Neto demonstra uma humildade pouco vista entre celebridades e um comportamento que vai contra o discurso da antipolítica, tão prejudicial a qualquer sociedade que vise ser democrática e inclusiva. Se as mais variadas formas de arte não têm capacidade de mudar o mundo, elas podem mudar o comportamento das pessoas, estas, sim, com condições de mudar seu entorno. Com seu posicionamento, Felipe Neto pode fazer com que muitas pessoas, particularmente as mais jovens, parem para pensar; e que pensando, mudem; e que mudando a si mudem os outros também.

E o autor do poema citado no início deste artigo se chama Bertold Brecht e diz o seguinte: “O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais.”

Não sei se Felipe Neto leu alguma obra de Brecht. Mas tenho certeza que ele – quando vê a periferia entregue ao crime e à desigualdade, a falta de leitos hospitalares, a insegurança alimentar de milhões, a polícia matando inocentes e o descaso público com o povo – sabe, de fato, que tudo isso é fruto e obra das suas e das nossas escolhas políticas.