Audiência Pública aponta fraudes, desresponsabilização do estado e custos maiores em gestões terceirizadas na saúde pública

Fraudes, desresponsabilização do estado e custos maiores. Estes foram os principais pontos que mereceram destaque, nesta quarta-feira (29/4), na audiência pública que tratou da atuação das organizações sociais na área da saúde no Rio Grande do Sul. Realizada pela Comissão de Saúde e Meio Ambiente (CSMA) da Assembleia Legislativa, tendo como proponente o deputado Valdeci Oliveira, a partir de uma solicitação do Sindicato dos Enfermeiros do Rio Grande do Sul (SERGS), o debate reuniu gestores, entidades representativas de usuários, trabalhadores da saúde, sociedade civil e pesquisadores do tema.

“No discurso governamental, o acordo firmado com organizações sociais (OSs), empresas teoricamente sem fins lucrativos de natureza privada, são para tornar a prestação do serviço em saúde mais eficiente e eficaz, pela facilidade que essas instituições possuem em realizar compras e contratações por estarem liberadas do burocrático trâmite das licitações. Porém, o que a nossa população tem visto, na prática, e é corroborado por um estudo realizado em conjunto por oito universidades brasileiras, que formam o Complexo Econômico Industrial da Saúde (CEIS-FIOCRUZ), é justamente o contrário”, afirmou Valdeci em sua fala durante a abertura dos trabalhos. De acordo com o levantamento citado pelo parlamentar, há casos emblemáticos, como no Estado do Espírito Santo, onde o gasto com as OSs que administram três hospitais estaduais terceirizados é 2,4 vezes superior às unidades totalmente públicas, sem garantia de que haja melhora no serviço.

 O mesmo levantamento feito em todos os contratos de gestão firmados entre 10 estados brasileiros e as OSs, apontou que o problema não é o contrato de gestão inicial, mas os aditivos feitos em seguida. Alguns serviços, cujos valores iniciais eram de R$ 250 mil/ano saltaram para R$ 1,5 milhão/ano. Há casos de um único contrato com 15 aditivos em apenas 12 meses. “O que temos de debater, com base nos levantamentos feitos e nos estudos realizados, é se as OSs são ou não são eficazes, pois me parece que elas gastam muito mais e sem controle, pois estão livres de qualquer fiscalização social, ou seja, não precisam prestar contas sequer aos conselhos estaduais ou municipais de saúde”. frisou Valdeci. Para o parlamentar, outro ponto que precisa ser observado é que, em inúmeros casos, as instituições contratadas recebem hospitais recém-construídos ou reformados, completamente equipados, para um negócio em que não há riscos, pois é totalmente financiado com recursos públicos e sem fiscalização.

A constação encontrou eco na pesquisa feita pelo médico e professor do Curso de Saúde Coletiva da UFRGS, Alcides Miranda, que tem estudado, há pelo menos 10 anos, os impactos da terceirização na saúde. Além de analisar experiências internacionais, Miranda revisou mais de 300 contratos com terceirizadas em estados como Santa Catarina, Paraná, Bahia, São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. “Na Europa, por exemplo, quando se realiza uma parceria Público Privada, o empresário investe, busca crédito em banco privado e com taxas de mercado, explora o negócio por 10 anos e tem seu retorno financeiro vinculado a indexadores cujo resultado será melhor ou pior dependendo da economia. Aqui a iniciativa privada busca dinheiro no BNDES, têm contratos de 30 anos e indexadores pré-fixados. Ou seja, não há risco, não há como perder”, explicou o professor. Neste sentido Miranda usou o humor e fez uma analogia usando como exemplo a parceria feita entre uma galinha e um porco para abrir uma lanchonete, onde a ave entra com os ovos e o suíno com o bacon. “Neste caso o estado (e o povo) é o porco”, afirmou. Segundo ele, os dados coletados na última década mostram que, apesar do volume de transferências públicas de recursos para as OSs  ter aumentado no país, a acessibilidade à saúde não foi ampliada e não houve melhora efetiva para os usuários. De forma concreta, a transferência da gestão para setores privados não alterou em nada o impacto sobre os serviços. Além de que a tendência é uma redução do controle social. “Os contratos visam apenas a realização de mais procedimentos”, destacou Miranda, lembrando ainda que, em editais como o lançado pela prefeitura de Porto Alegre no mês passado, não são apresentadas evidências ou dados que comprovem haver mais eficiência neste tipo de complementariedade. “Se busca, isto sim, com um discurso ideológico, introjetar junto à população a lógica empresarial nos serviços públicos, apesar de não termos encontrado nenhuma vantagem nem para os usuários nem para os trabalhadores”, explica.

Para o presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Rio Grande do Sul, Estavão Finger, as experiências têm mostrado que o ente público, quando opta pela terceirização dos serviços, foge da sua responsabilidade enquanto eleito pelo povo e a transfere para as empresas. “Além disso não existe fiscalização dos contratos de gestão e há conivência com processos ilícitos, fazendo com que o dinheiro público vá direto para os bolsos particulares”, disparou Finger. Para o sindicalista, o problema é agravado por contratos de trabalhos frágeis, fazendo com que setores terceirizados sejam os campeões de acidentes e mortes no trabalho. “Esse debate precisa ser feito com a sociedade, regionalmente, nas câmeras de vereadores para sensibilizar os gestores e mostrar o quão maléfico é esse modelo para a população”, criticou.

 A posição também foi compartilhada pelo presidente do Sindicato Médico do RS (SIMERS), Marcelo Matias. Para ele, é importante que a população seja orientada para tomar suas decisões, pois nas campanhas eleitorais os candidatos não dizem que o objetivo de seus governos é terceirizar a saúde. “Seria lícito, mais ético e correto se fizessem isso. E se trata de uma falácia que as organizações são sem fins lucrativos. Não acredito que sejam tão bondosos, sem interesse em lucro. Não sou contra que ganhem dinheiro, sou contra a mentira”, enfatizou o dirigente.

Além dos problemas elencados, diversas falas também destacaram as fraudes registradas por diversas OSs no Rio grande do Sul, que resultaram em significativos prejuízos tanto aos cofres públicos como na prestação de serviços de saúde aos usuários do SUS. Entre os exemplos, o ocorrido entre 2007 e 2009, em Porto Alegre, que terceirizou a gestão do Programa de Saúde da Família para o Instituto Sollus, o que resultou em um desvio milionário. No ano passado, mais de R$ 10 milhões foram devolvidos aos cofres da prefeitura como parte das investigações sobre a entidade. Outro caso disse respeito ao Grupo de Apoio à Medicina Preventiva e à Saúde Pública (Gamp) em Canoas. Os termos de fomento assinados entre a prefeitura e o Gamp em 2016 previam que a OS assumisse o gerenciamento assistencial, administrativo e financeiro do Hospital de Pronto Socorro de Canoas, Hospital Universitário, duas Unidades de Pronto Atendimento e quatro Unidades de Atendimento Psicossocial. Os contratos, com vigência de 60 meses, previam a contraprestação, por parte do município, de R$ 16 milhões por mês, sendo reajustados. No ano passado o valor pago ao Gamp era de cerca de R$ 23 milhões mensais. As investigações do Ministério Público mostraram que o GAMP receberia mais de R$ 1 bilhão durante os cinco anos de contrato com a prefeitura. Foram detectados, entre as inúmeras irregularidades, o superfaturamento de medicamentos em até 17.000% e uma compra de remédios no valor de R$ 1 milhão e 200 mil, que se fosse licitada custaria R$ 441 mil.

O deputado Valdeci solicitou à representante do TCE, a auditora Izana Silva, uma urgente fiscalização do contrato celebrado entre governo do estado, sem licitação, e o Instituto de Cardiologia para gerir, inicialmente, a implantação de três ambulatórios do Hospital Geral de Santa Maria. O contrato envolve R$ 17 milhões. Além disso, a gestão de todo o Hospital, com seus 230 leitos, também deverá ficar a cargo do Instituto. 

Ao final dos debates, Valdeci propôs, no âmbito da CSMA, a realização de reuniões de trabalho que unam os diversos atores presentes, como Ministério Público, sindicatos, governo do estado, TCE e Assembleia Legislativa. “Precisamos pensar as questões que envolvem todo esse processo de terceirização da gestão saúde pública justamente para elaborar alternativas. Precisamos dar consequência a esses estudos, ao que debatemos aqui e ao que verificamos diariamente nas unidades hoje entregues às OSs”, finalizou o parlamentar.