Por Valdeci Oliveira –
A semana que antecede o Dia da Consciência Negra, que marca na próxima segunda-feira, 20 de novembro, a luta diária dos pretos e pretas por direitos, dignidade e respeito, colocou o RS nas manchetes nacionais. Chamamos a atenção para um episódio que era para ser um simples pedido de pastéis, via delivery, mas que mostrou que, para alguns, o ato de saciar a própria fome carrega uma condicionante de preconceito: “…na última vez, veio um motoboy negro, peço a gentileza que mande um branco, não gosto de pessoas assim tocando a minha comida”, escreveu o cliente na observação do aplicativo de entrega.
De tão estúpido, o ocorrido em Campo Bom, na Região Metropolitana de Porto Alegre, suscitou dúvidas se era um trote, uma “piada” de muito mau gosto ou um deboche com algo que é a razão do sofrimento de uma legião de homens e mulheres cujos antepassados participaram com sangue, suor e muito trabalho (compulsório e não remunerado) da construção do nosso país. E eles, passados 135 anos da promessa feita lá atrás, de que seu povo seria livre, continuam a ter de lutar para que os grilhões, hoje não mais de ferro, mas de ações e comportamentos ignóbeis, realmente não mais os aprisionem.
Também choca que uma decisão do STF, equivalendo racismo e injúria racial, tornando esta última um crime imprescritível, ainda seja, mesmo que de forma sussurrada, considerada um ‘exagero’. Na contramão desse discurso, no início do ano, o presidente Lula sancionou a lei 14.532, aumentando a previsão de pena de dois a cinco anos a quem comete esse tipo de injúria.
Para muitas pessoas, não fazer piada com pretos e pretas equivale à morte do humor. E não poder xingar um desafeto com termos que o igualem a um símio se negro for, é um ataque à liberdade de expressão. Para esse segmento, o politicamente correto não passa de ‘mimimi’ de quem busca dividir a sociedade em brancos e não brancos. Ou seja, não faltam ‘justificativas” para relativizar o grotesco de tais comportamentos.
O que a realidade tem nos mostrado, é que cada dia deve ser um ato de resistência às tentativas de retrocesso que setores conservadores buscam impor com o falso discurso da meritocracia, em que o sucesso depende apenas do esforço de cada pessoa. E com isso, ignoram, propositalmente, que grande parte das injustiças sociais e das desigualdades econômicas é resultante do racismo estrutural vivenciado no Brasil.
Como exemplo dessa ‘normalização’, temos a Lei 10.639/03, que garantiu o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira na educação básica pública e privada. A legislação, passadas duas décadas desde a sua promulgação pelo presidente Lula quando em seu primeiro mandato, não atingiu sua implantação plena, a cargo dos municípios.
Analisando os dados levantados em pesquisa pelo Geledés Instituto da Mulher Negra e pelo Instituto Alana, junto a 1.187 prefeituras brasileiras, vemos que mais da metade (53%) ignoram este avanço e não realizam trabalhos para a sua aplicação. Somente 29% delas têm ações neste sentido e o restante, 18%, simplesmente não fazem nada a respeito. Os gestores afirmam não receber apoio para a tarefa.
No caso gaúcho, esse ‘não apoio’ está ilustrado também em outros números, que acabam por refletir a necessidade ou não de políticas específicas. O 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho, mostra que o Brasil registrou 2,4 mil casos de racismo em 2022, cifra 67% maior do que o ano anterior e, muito provavelmente, subnotificada, pois muitos estados não disponibilizaram dados. Para piorar – e aí é que entra o RS -, têm as chamadas retificações negativas. O estado refez para baixo sua série histórica, minimizando a média nacional, e não informou nada sobre 2022. Isso é preocupante, pois não irá gerar diagnóstico confiável nem impacto na produção de políticas públicas.
E novamente, na contramão a esse tipo de postura, a Lei das Cotas foi atualizada pelo metalúrgico que ocupa o Palácio do Planalto. Agora, os quilombolas foram incluídos como beneficiários, haverá o monitoramento anual da Lei, prioridade para os cotistas no recebimento do auxílio estudantil e a extensão das políticas afirmativas para a pós-graduação.
Em novembro de 2016, no simbólico plenário da Assembleia Legislativa do RS, entreguei a Nei D´Ogum o Prêmio Zumbi dos Palmares, condecoração do Parlamento estadual destinada a entidades e personalidades com destacada atuação junto à comunidade afrodescendente gaúcha. Na época, disse que o prêmio não poderia estar em melhores mãos, pois Nei muito contribuiu nos movimentos LGBT, negro, cultural e social de Santa Maria. Em agosto de 2017, o Ney despediu-se de nós, deixando um grande legado.
Que os passos desse grande ser humano negro e periférico continuem sendo reproduzidos e ampliados, pois a nossa sociedade segue necessitando de lutadores como ele. E que a memória de Zumbi, herói da resistência africana no Brasil, morto em 1695, seja mais respeitada por nossos governantes.