Por Valdeci Oliveira e Paola Carvalho
Ter uma renda significa exercer o direito à cidadania e possuir, por menor que seja, certo grau de dignidade humana. Significa se afastar da ameaça da pobreza e ainda contribuir para o desenvolvimento do país. Por entender que essa premissa é central dentro do enfrentamento ao profundo histórico de desigualdade social do Brasil, é que me atrai, já há um bom tempo, o debate do tema da Renda Básica Universal (RBU).
No nosso país, o maior defensor dessa forma democrática de repartir e distribuir a riqueza é o ex-senador Eduardo Suplicy, atualmente vereador na cidade de São Paulo. Suplicy é o autor da Lei 10.835/2004, sancionada pelo ex-presidente Lula, que institui por etapas a chamada Renda Básica de Cidadania. A ideia, segundo ele, é começar o pagamento de um benefício financeiro a quem mais precisa até atingir a renda básica incondicional ou universal.
A defesa desse expediente encontra entusiastas que estão longe de serem considerados comunistas ou socialistas, como o diretor-presidente da Tesla, empresa de desenvolvimento tecnológico de ponta, Elon Musk, e o cofundador da rede social Facebook Chris Hughes. E projetos semelhantes ao defendido por Suplicy já são desenvolvidos, há alguns anos, em países como Canadá, Estados Unidos, Austrália, Reino Unido e Índia.
Justamente para conhecer experiências que possam traduzir o potencial das políticas de renda básica, a nossa assessoria esteve visitando a cidade de Maricá, no Rio de Janeiro, em setembro passado. Com 150 mil habitantes, o município abriga um projeto em curso que pode se transformar em uma referência de inclusão social. Neste ano, a prefeitura local anunciou que 50 mil pessoas passariam a receber uma RBC correspondente a R$ 130 por mês. O objetivo é ampliar o programa para que, até 2021, toda a população receba o benefício. Para estimular que esses recursos sejam gastos na própria cidade, foi criada, inclusive, uma moeda social e um cartão magnético, ambos aceitos pelo comércio local.
No RS, experiências de renda básica ainda não foram implementadas. Mas há acúmulos importantes na área da distribuição de renda que são referenciais contra a escalada da desigualdade e podem contribuir positivamente para o debate. O RS Mais Igual, criado na gestão Tarso Genro, por exemplo, atendeu cerca de 100 mil famílias gaúchas em situação de extrema pobreza. No interior do Rio Grande, cada vez mais se consolida a economia solidária, a partir do Projeto Esperança/Cooesperança, da Arquidiocese de Santa Maria. Lá, na Região Central do Estado, cerca de seis mil famílias deixaram a situação de vulnerabilidade social que se encontravam para se integrarem em ações de geração de trabalho e renda, seja na agricultura familiar, na produção de alimentos coloniais ou no artesanato. Também em Santa Maria, a experiência pioneira do Banco do Povo é norteadora para o estímulo dos micro e pequenos empreendedores.
Uma constatação que se impõe, no entanto, nesse cenário de luta para conscientizar a sociedade da relevância do incentivo à inclusão social, é a de que a economia solidária, o RS Mais Igual, a Renda Básica e até o Bolsa-Família ainda são ilustres exceções na prática político-administrativa nacional. Incrivelmente ainda predomina nesse país marcado por injustiças e distorções, a visão de que é “oneroso” ou “ineficaz” propiciar políticas que incluam os mais pobres. Essa visão é um contrassenso em um país com mais de 30 milhões de pessoas vivendo em situação de desemprego, trabalho informal e desalento (quando nem se procura mais uma ocupação) e onde, segundo pesquisa recente do IBGE (Pnad Contínua), metade da população vive com R$ 413 mensais. Será que temos condições de alijar esse contingente do mercado de trabalho e do mercado consumidor? Será que é correto não incentivar os mais pobres a evoluírem em uma nação onde a parcela 1% mais rica tem quase 40 vezes o ganho dos 50% mais pobres?
Também conforme a Pnad Contínua – de 2017 para 2018 -, a renda dos 10% mais pobres caiu 3,2% no Brasil, enquanto que a renda do grupo 1% mais rico aumentou 8,4%. Ou seja, o fosso da desigualdade, nos dias atuais, está ainda mais profundo em um território já historicamente desequilibrado no âmbito socioeconômico. Confrontar ou desdenhar da estatística não vai alterar essa dura realidade. O que, de forma urgente, o Brasil precisa fazer é desobstruir o funil que leva à aquisição da cidadania. As políticas pró-inclusão, como a Renda Básica de Cidadania, são caminhos concretos para romper amarras e para, gradualmente, expandir as oportunidades de quem habita o andar inferior da pirâmide social brasileira. O Poder Público e a sociedade têm de estar preparados para debater o tema sem preconceitos e para transformar essas alternativas em políticas públicas viáveis, inclusivas e emancipadoras.
Paola Carvalho é diretora de Relações Institucionais e Internacional da Rede Brasileira de Renda Básica
(Artigo publicado originalmente no site Sul21)