Artigo – O skate “sambou” sobre o preconceito

Por Valdeci Oliveira –

Nas primeiras décadas do século passado, descer o morro ou andar pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro com um pandeiro na mão era arriscado. A polícia confiscava o instrumento e seu dono, se não tivesse como provar que tinha um emprego regular, era preso por vadiagem. Num misto de racismo e ignorância, ser considerado bandido era um passo.

Pouco mais de meio século depois, na capital paulista, não eram os instrumentos de percussão utilizados pelos negros o alvo do conservadorismo e, novamente, da ignorância. Era o skate, um pedaço de tábua com quatro pequenas rodas que uma década antes começara a atrair o interesse dos jovens brasileiros. Andar com o equipamento por parques ou ruas também era caso de polícia.

Respaldada por uma decisão autoritária do então prefeito Jânio Quadros, ela perseguia e prendia quem ousasse se deslocar sobre a pequena prancha com rodas. Hoje o samba é a música que melhor ilustra a identidade brasileira, e o skate é um esporte olímpico responsável por trazer ao país três medalhas conquistadas nos Jogos de Tóquio. Ambas situações bem caracterizadas pelos adágios populares que nos lembram que o mundo dá voltas e nada melhor que um dia após o outro.

Em Santa Maria, não há registro, pelo menos oficialmente, de prisões e tampouco proibições contra o samba ou o skate, o que não significa inexistência de preconceito contra ambos. Ao saber que o esporte fora reconhecido como prática olímpica, e que Kelvin Hoefler, Rayssa Leal e Pedro Barros nos brindaram com talento e reconhecimento mundial, não pude deixar de lembrar de quando fui prefeito da nossa cidade, e o skate, mais precisamente o apoio público a sua prática, foi alvo de severas críticas desferidas por alguns segmentos.

Como hoje, na época tínhamos a premissa de que os espaços públicos devem ser usufruídos democraticamente pela comunidade. Além disso, havíamos implementado o Orçamento Participativo (OP), um modelo transparente de discussão e decisão sobre como aplicar o orçamento da cidade que, ao fim e ao cabo, pertence à população, independentemente da sua idade ou condição social.

E foi numa das edições do OP, após as rodadas de debates entre os representantes das inúmeras regiões da cidade, que surgiu a demanda por um local onde os jovens pudessem usufruir desse esporte com segurança, deixando para trás o perigo de trafegar por ruas e entre carros. Discute aqui, negocia ali, ficou decidido pela construção de uma pista oficial no Centro Desportivo Municipal (CDM).

Por algum tempo, tratou-se da única pista com aquelas características em todo o interior do estado. Um trabalho que muito orgulhou a mim e a minha equipe, principalmente por ser uma decisão coletiva, que trouxe a gurizada junto à discussão de como funcionava o mundo real das escolhas políticas e frente a frente na luta pelo que desejavam.

Sem surpresa – até porque muitos achavam que orçamento público e povo não deveriam andar juntos quando o assunto é definição de prioridades – fomos atacados com argumentos que sequer poderiam ser chamados como tal. Entre eles, de que o custo era alto e se poderia comprar um apartamento com os R$ 55 mil investidos. Os críticos viam as tribos do skate como hordas de vândalos desocupados e não como simples jovens sedentos por praticar esportes ou conviver socialmente em um espaço que não fosse preciso pagar uma mensalidade.

Com o ótimo resultado obtido na primeira iniciativa, levamos o exemplo do CMD para a periferia, onde meninos e meninas da Cohab Tancredo Neves, na Região Oeste, se aventuravam numa pista improvisada. Era o que tinham e, com razão, dela não abriam mão. Coube então dialogarmos com a comunidade e, a exemplo do decidido no OP, as famílias queriam que seus filhos tivessem um espaço de lazer longe do perigo do asfalto.

Feitos os ajustes, estabelecido o projeto e realizada a licitação, a gurizada da Tancredo – e que hoje são pais e mães – também passou a usufruir de uma pista modelada. Uma das cenas marcantes foi observar, durante a elaboração do projeto, meninos e meninas debruçados sobre a prancheta onde se traçavam as linhas iniciais do que viria a ser a pista, ao lado de técnicos e engenheiros, para sugerir ângulos que colaborassem na execução de manobras. Isso era o retrato da participação, do não ficar alheio aos seus direitos, de trabalhar conjuntamente por um objetivo que iria beneficiar dezenas ou centenas de outros como eles.

Ao ver a “fadinha” do skate, de apenas 13 anos, subir ao pódio olímpico, senti a satisfação do dever cumprido e a certeza de que, lá atrás, há 18 anos, não erramos ao ouvir a juventude de Santa Maria. Pois lugar de criança, adolescente e jovem é no esporte, é na modalidade que quiserem praticar.

Esporte é saúde, é vida. E cabe aos gestores públicos entenderem isso. Que o respeito ao skate avance cada vez mais em Santa Maria, no RS e no Brasil, e que os espaços existentes para essa prática sejam preservados, qualificados e ampliados.

Artigo originalmente publicado no site www.claudemirpereira.com.br