Artigo – O apagão gaúcho deixa muitas lições

Por Valdeci Oliveira –

Os últimos eventos climáticos que assolaram o RS não deixam dúvidas quanto a duas questões fundamentais: a de que o aquecimento global não é discurso de ambientalista fanático e que o estado, ao abrir mão de setores fundamentais no dia-a-dia da população, como a energia elétrica, acaba dando um tiro no próprio pé.

E aqui faço uma importante observação: não sou e nunca fui contra as chamadas parcerias público-privadas, um instrumento cuja natureza jurídica permite que administrações públicas – sejam prefeituras, estados ou a própria União – estabeleçam contratos com empresas particulares para que estas realizem serviços de responsabilidade das primeiras.

Quando bem feitas, fiscalizadas e realmente voltadas ao bem comum, tendem a dar resultados positivos. Esta foi minha experiência, duas décadas atrás, quando prefeito de Santa Maria. Caso contrário, o serviço ‘entregue’ é o que vimos nos últimos dias em diversas regiões do estado atendidas pela CEEE Equatorial ou pela RGE, que resultaram em incômodo e transtornos mil às pessoas e empresas.

Falem o que quiserem da antiga CEEE, que quando estatal tinha, sim, lá seus problemas, a maioria, diga-se, causados pelas más gestões de governantes que passaram pelo Palácio Piratini e que jogavam contra a companhia.

Mas nunca os gaúchos e gaúchas chegaram a ficar uma semana inteira sem luz em suas residências e assistindo a consultórios médicos, salões de beleza, restaurantes, bares, lancherias e pequenos mercados fechados diante da impossibilidade de atender seus clientes.

Nunca se viu tanta comida perecível sendo jogada fora, inutilizada. Com exceção de períodos na pandemia, que obrigaram ao fechamento desses estabelecimentos, as portas cerradas destes fizeram parte do cenário de muitas cidades na semana passada.

E a falta de energia trouxe junto a falta de água, pois, com motores sem funcionar, as estações de bombeamento não conseguiam mandar o precioso líquido aos bairros. E tudo isso ainda com o agravante de que as cidades já estavam tendo muito trabalho para se recuperar dos destelhamentos, queda de barreiras, alagamentos e vias interditadas, fosse pela água da chuva ou pelas árvores caídas ao chão.

E aqui um pouco de História nunca é demais: em 1959, o então governador do estado, Leonel Brizola, após inúmeros pedidos junto à empresa, que na época era uma filial da norte-americana Bond & Share e se chamava Companhia de Energia Elétrica (CEE), para que esta ampliasse a distribuição de energia no RS – pois parte significativa da população, tanto da capital quanto do interior, onde a realidade era ainda pior, ficava às escuras – acabou por encampar a multinacional.

Desde então, muito foi investido do dinheiro dos nossos impostos no desenvolvimento dos serviços, que de forma paulatina e constante foi sendo espraiado pelos rincões do estado, mesmo com tropeços e falhas pontuais próprias e equivalentes ao tamanho do desafio. Mas foi feito.

Mas em pleno século XXI, e no modelo de estado mínimo defendido pelos ultraliberais, em que o lucro privado está acima de tudo, um temporal, mesmo além da conta, resulta em cidades inteiras sem energia e sem informação. Resulta num verdadeiro deboche ver o prefeito de Porto Alegre, a capital do nosso estado, dizer que ele próprio não conseguia falar com a direção da Equatorial, em uma ironia do destino onde ele próprio, quando deputado estadual, votou pela privatização da CEEE.

Não se trata de defender o estado máximo, mas um estado do tamanho que precisa ter para cumprir com a sua função, que é atender os interesses da sociedade em serviços essenciais. Trata-se de proteger setores estratégicos, de soberania e de desenvolvimento que vão muito além do falso discurso de que apenas a iniciativa privada sabe fazer.

O apagão gaúcho mostrou que a realidade é outra. Não é por nada que, segundo o Instituto Transnacional (TNI), sediado na Holanda, nos últimos 20 anos ocorreram cerca de 900 casos, em 37 países, maioria europeus, em que os governos retomaram a administração desses serviços.

E falo também de respeito, de responsabilidade, falo de postura séria diante de um quadro caótico onde quem deveria cumprir com suas funções simplesmente lavou as mãos, olhou para o lado como se com ele não fosse. Falo do governo do estado, que não pensou duas vezes antes de vender a CEEE por míseros R$ 100 mil e só depois de muita revolta da população veio a público “criticar” os novos donos.

E dentro deste cenário, assinamos pedido para que uma investigação isenta e transparente seja feita pelo Parlamento estadual, movimento este apoiado pela população e por gestores de inúmeros municípios.

Se tem uma coisa que aprendi desde cedo, é que “vender o almoço” para “pagar o jantar” nunca deu certo. E botar a raposa a cuidar do galinheiro é um convite para o prejuízo.

Foto: Marcelo Casal Jr/Agência Brasil