Por VALDECI OLIVEIRA –
Dia desses, conversando com um velho conhecido, este me provocou e perguntou, com significativa dose de ironia, se eu sabia por que os negros no Brasil, pelo menos oficialmente, se dão bem no futebol e no samba. Diante do questionamento, feito por um negro, confesso que não consegui elaborar de pronto uma resposta. Na verdade, se tratava de um questionamento retórico, do tipo que não precisa de uma resposta do interlocutor, mas da sua reflexão. De qualquer forma, ele mesmo respondeu. Segundo sua percepção, formada após uma experiência de vida de décadas, são esses os únicos espaços – além dos trabalhos pouco valorizados e subempregos de baixa remuneração – que a sociedade branca lhes concede. São espaços em que o sistema instituído através de séculos de subjugação, conquista e dominação aceita que participem. Sabedor do mundo em que vivo concordei, infelizmente.
Isso faz com que, por exemplo, 65% da população carcerária no país, segundo os últimos dados apresentados pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), seja formada por pretos e pardos. Isso também faz com que os trabalhadores negros ganhem por volta de R$ 1,2 mil a menos que os brancos. Se o recorte incluir gênero, no caso das negras, a diferença é ainda maior.
Na prática, o que vivenciamos em nosso dia a dia são comportamentos sociais que, analisados de perto, nos ajudam a entender o racismo entranhado em nossa sociedade, inclusive culturalmente, por mais que ela insista em negar – ou minimizar – sua existência.
São posturas certamente criticáveis, mas que, hoje, na conjuntura atual, tais desigualdades históricas chegam a ser vistas como “mimimi” de “esquerdopatas”, que se utilizam da defesa das minorias para seu projeto de poder.
Não fosse isso, seria impensável que, em pleno século XX, um diretor de jornalismo da maior rede privada de comunicação da América Latina tenha escrito um livro com o título “Não Somos Racistas”.
Não fosse isso seria impensável que, em pleno século XX, apesar de o Brasil ter sido a última nação ocidental a libertar seus escravos e proibir tal prática, ainda tenhamos parcela significativa da nossa sociedade se posicionando, por exemplo, contra as cotas raciais nas universidades.
Nos 131 anos após abolição, os negros e negras somente tiveram significativo acesso ao ensino superior a partir de políticas públicas específicas e/ou ações afirmativas como as cotas. Até então, pouco mais de 5% dos jovens pretos ou pardos na classificação do IBGE e em idade universitária estudavam em alguma universidade. Passado uma década, perto de 13% dos negros entre 18 e 24 anos chegaram ao nível superior. Um grande avanço sem dúvida, mas ainda pouco se levarmos em conta que mais da metade da nossa população se considera não branca.
Se olharmos de frente contra o espelho social, o reflexo nos mostrará que somos uma sociedade que busca velar e até justificar essa condição repulsiva que permeia praticamente todas nossas relações. Às vezes, com comentários “inocentes”, outras com piadas “engraçadas” ou até mesmo com posturas não invasivas, mas cujo resultado é o desapreço, o desrespeito e a miopia, que faz com que não enxerguemos o outro como semelhante.
Só quando enfrentarmos de frente, sem medo de encarar nossos fantasmas ou “esqueletos” escondidos dentro dos armários do nosso subconsciente, e avaliarmos de forma crítica nossas posturas diárias e nossos posicionamentos é que estaremos dando um passo à frente.
Sim, o racismo é um problema de todos nós, mesmo daqueles que se dizem, até sinceramente, combatentes dessa chaga que teima em não cicatrizar. Pois, se quem se posiciona contra prefere o fazer de forma tímida, titubeante ou com críticas “silenciosas”, está sendo, na prática, conivente – ou cúmplice até – com algo extremamente reprovável e criminoso.
Certa vez li num muro uma pichação que dizia: todos temos sangue índio e negro. Alguns nas veias, muitos nas mãos. Infelizmente, uma verdade – mesmo que relativa – que desumaniza, que nos tira todo caráter humano do nosso espírito. Uma verdade “inconveniente” que mostra apenas que o racismo afronta a lei, o Estado, a dignidade e os direitos da pessoa.
Por tudo isso, atitudes como a do técnico Bahia, Roger Machado, – que, recentemente, em uma entrevista coletiva, colocou o “dedo na ferida” da nossa hipócrita sociedade ao falar sobre o racismo – merecem reconhecimento. Chega de suavizar a questão: para superar o racismo e a discriminação temos, como primeiro passo, admitir que vivemos, sim, em um ambiente eivado de preconceito e intolerância. A partir desse reconhecimento, desse marco zero, é que temos de lutar coletivamente por igualdade.
O racismo não se relativiza. Nele não existe “mais ou menos”, “o não é bem assim”. Lutar contra o racismo não te identifica como de esquerda. Te identifica como ser humano.
Foto: Reprodução site Geledés – Instituto da Mulher Negra