Por Valdeci Oliveira –
Quando menino a água tinha para mim muitos significados. De tão fundamental e óbvia sua importância, principalmente para a minha família, que morando na roça dependia dela para a lavoura e para o dia-a-dia doméstico, o seu real sentido, o de um bem natural e essencial para o desenvolvimento e manutenção da vida humana e de qualquer outro ser vivo, passava quase despercebido.
Não que os adultos ignorassem sua relevância social e política. Mas por estar na natureza e dela fazer parte, nem se especulava o contrário. Talvez não nos déssemos conta, mas encarávamos a água como um bem, digamos, indiscutível, algo que hoje eu coloco no mesmo patamar das cláusulas pétreas da nossa Carta Magna, que não podem ser alteradas nem mesmo por Proposta de Emenda à Constituição (PEC).
É a garantia que temos de que nenhum aventureiro de perfil autoritário interfira na forma federativa do Estado, no voto direto, secreto, universal e periódico, na separação dos Poderes e nos direitos e garantias individuais.
Não ter acesso à água ou tê-lo de forma precária trazia – como hoje – a sentença de se tornar um condenado à mera sobrevivência, a cumprir uma pena não-oficial por um crime não cometido.
E justamente pelo bem “água” ser revestido se tantos significados, que tirá-la do controle do estatal, como quer o governador Eduardo Leite, e suprimir dela seu caráter público e universal e entregá-la à iniciativa privada em concessões que durarão décadas, é um retrocesso social sem precedentes, um desmonte do estado nunca visto na história do RS. E olha que não faltam maus exemplos.
Logo no início do livro “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”, obra referencial para as ciências sociais, em que Karl Marx faz uma análise da vida política francesa nos anos de 1850, que culminaria com o sobrinho do Napoleão mais conhecido imitando o tio e se autodeclarando imperador, o pensador alemão afirma, com outras palavras, que a História se repete, uma vez como Tragédia e outra como Farsa. Guardadas as devidas proporções de importância e relevância, pois ele se referia a grandes fatos e personagens da história universal, não há como não sentir um gosto de “déjá-vu” no momento atual.
Mas para chegarmos a ele é preciso revisitar a segunda metade da década de 1990, quando o RS experimentaria a Tragédia, com o estado sendo criminosamente dilapidado com programas de demissões voluntárias de servidores, privatizações de importantes empresas públicas – CRT e de uma parte da CEEE – e concessões generosas e sem riscos à iniciativa privada. Os contratos para a exploração das rodovias, por exemplo, apesar dos absurdos em termos de privilégios e facilidades para os novos donos dos serviços, estavam tão bem amarrados que muito pouco pode ser feito em contrário.
E o resultado para o estado foi a inexistência de melhora nas suas finanças. Pelo contrário, o que experimentamos dali para frente foi o crescimento brutal da dívida pública gaúcha, fruto da draconiana negociação feita pelo então governo Antônio Britto com a União, que comprometeu cada centavo que entrasse no caixa do Tesouro estadual. E os efeitos desse fracasso retumbante sentimos até hoje.
Essa foi a nossa Tragédia.
Já a Farsa estamos vivendo agora, entre outras medidas, com a iminente venda da Corsan. O compromisso exaustivamente repetido nas propagandas eleitorais e nos debates durante os dois turnos da disputa, assegurando aos eleitores de que não iria se desfazer da Companhia – presente em mais de 300 municípios gaúchos, que dá lucro ano a ano e se autofinancia com recursos próprios, além de possuir capacidade técnico-financeira para buscar investimentos sem comprometer sua saúde fiscal -, foi jogado no lixo pelo governador.
A Farsa também está na imagem de político moderno oferecida à mídia do centro do país. Nela, não faltam predicados como a busca da concertação, construção de consensos e manutenção do diálogo permanente. Mas, no mundo real, o “moderno” pisoteia direitos e cospe na democracia ao retirar da população a chance de opinar via plebiscito, assim como ignora solenemente a contrariedade dos prefeitos, cuja maioria é contra a venda da empresa ou defende não ser este o momento nem a forma de se conduzir um processo que interfere em toda a sociedade gaúcha.
A falta do diálogo é tamanha que, apesar dos apelos, o governador sequer recebe os professores, cuja ousadia é reivindicar reposição a salários depauperados e congelados há 7 anos, assim como as demais categorias de servidores. A agenda do chefe do Piratini hoje só está vaga para quem vem disposto a aplaudir ou dar tapinha nas costas.
Vivemos hoje uma Farsa de múltiplas facetas, de voz educada e roupas bem cortadas, perpetrada por um jovem com receita velha, cujos resultados todos conhecemos.
Ao contrário do governador, que classifica o desmonte das estruturas públicas como façanha, vou honrar os votos a mim confiados e lutar em defesa da água pública e de uma Corsan pública para todos os gaúchos e gaúchas.
Caso contrário, nessa repetição da História, onde apenas alguns saem ganhando, a Farsa, organizada para mostrar aos donos do dinheiro que seu autor tem condições de ser o seu candidato a presidente, será a nossa nova Tragédia.
Imagem: Polis 24
Artigo originalmente publicado no site www.claudemirpereira.com.br