Por Valdeci Oliveira –
No início da semana, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi novamente chamado a se manifestar pelo óbvio. A mais alta instância do Poder Judiciário brasileiro decidiu, por unanimidade, obrigar o presidente e sua equipe ao chamamento à razão. Com o julgamento, o governo federal deverá manter o programa de renda básica aos mais pobres – o Bolsa Família agora renomeado Auxílio Brasil, que também absorveu o Auxílio Emergencial -, a quem sobrevive na pobreza e na sua versão mais extrema. Se dependesse do mandatário máximo da nossa República, a ajuda seria feita somente até dezembro do ano que vem.
A decisão se dá num momento em que a pandemia não acabou, os efeitos sociais e econômicos da crise continuam, em que o Brasil retoma ao mapa da fome da ONU, numa conjuntura onde pessoas se acotovelam em caçambas atrás de ossos, em que cenas de famílias remexendo lixeiras atrás de restos de comida se tornaram comuns, onde crianças desassistidas não conseguem sequer se concentrar nas salas de aula porque não estão alimentadas.
A votação buscou dar um recado de que algo precisa ser feito num país que pontua as primeiras colocações entre as nações com a pior distribuição de renda do planeta, onde os mais ricos sequer pagam impostos proporcionais aos recolhidos pela maioria da população e onde os principais bancos festejam um lucro líquido – e recorde – de R$ 23,1 bilhões no segundo trimestre, ao mesmo tempo em que existem milhões de bocas famintas, excluídas do mais básico num jogo onde a linha de partida não é a mesma a todos.
A opção do Supremo foi fazer com que o governo garanta o mínimo a quem tem fome, a quem vive à margem de uma sociedade que prefere apontar o dedo acusador a outras nações do que olhar para si mesma. Foi para deixar claro que a fome é inaceitável, principalmente num país que bate recordes na produção de alimentos, em que o setor do agronegócio tem acesso a crédito subsidiado e não raro tem suas dívidas perdoadas pela União.
Os votos dos ministros e ministras se deram num cenário em que o titular da pasta da Economia lucrou, desde que assumiu o cargo, em janeiro de 2019, cerca de R$ 14 milhões com a alta do dólar e prefere colocar sua fortuna em paraíso fiscal para fugir dos impostos. Os votos para garantir um prato de arroz e feijão aos socialmente vulneráveis se deram num cenário em que as despesas do governo com as motociatas presidenciais já sugaram aproximadamente R$ 3 milhões dos cofres públicos, valor que não representa sua totalidade, pois dizem respeito a somente cinco das doze realizadas e não incluem as despesas das prefeituras e governos estaduais por onde a trupe palaciana desfilou.
A postura do STF se dá num cenário em que a pobreza absoluta suga milhões de mulheres e homens e envolve a garantia ao mais básico dos direitos humanos, que é o acesso ao alimento. A determinação do Supremo é em destampar os ouvidos do Poder Executivo Federal para que este ouça os lamentos de pais e mães, o choro de meninas e meninos e o roncar de seus pequenos estômagos. Ao fim e ao cabo, o que o Supremo quer é que se cumpra o artigo 6º da nossa Constituição, que prevê a alimentação como um direito social. Ou ainda, que o governo respeite e reconheça o Pacto Internacional de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado por 153 países, incluindo o nosso, em que o alimento é um direito humano básico.
Mais preocupado em mudar o nome e a configuração do Bolsa Família, o Palácio do Planalto, além de não se importar em garantir o benefício para além do ano que vem, já alijou milhões de pessoas desse direito. Só em Santa Maria, das 41 mil que receberam o Auxílio Emergencial, apenas pouco mais de 8 mil foram incluídas no novo programa, excluindo 33 mil nomes da lista. Se somarmos quem ficou de fora nos mais de 30 municípios da Região Central do estado, o número ultrapassa 74 mil.
Ao fazer conta “em papel de pão”, quando o assunto é garantir a sobrevivência dos mais pobres, o governo “esquece” dos R$ 204 milhões gastos por ele mesmo nos primeiros nove meses de 2021 com cartões corporativos, “esquece” das cenas em que nomes da família presidencial se esbaldam em banquetes ou se exibem morando em mansões de forma até hoje mal explicadas. Uma conta “em papel de pão” que utiliza como desculpa o cumprimento da legislação eleitoral e o teto de gastos, nunca observados quando se trata de beneficiar a si e aos seus.
Mas o recado – de que existem milhões de invisíveis instalados em nossas calçadas ou amontoados em nossas periferias – não é apenas direcionado a Brasília, mas à sociedade brasileira. É também aos governos estaduais, como o nosso, que num jogo de aparências inviabiliza a tramitação de projetos no Parlamento, que atenderiam 400 mil famílias pobres, para, em seu lugar, colocar sua própria iniciativa a não mais do que 8 mil mães, sendo que pouco mais de 600 de fato receberam alguma coisa.
O recado do STF foi claro e temos todos a obrigação de entendê-lo.
*Artigo originalmente publicado no site www.claudemirpereira.com.br)
Foto: Midia Ninja/RBA