Artigo – Cuidado! Vem aí a terceira onda das “reformas milagrosas”

por Valdeci Oliveira

Nos dicionários de língua portuguesa, o termo “reforma”, entre outros sentidos equivalentes, significa “mudança para melhor”. No Brasil do século 21, porém, o substantivo feminino guarda, na prática, sentido inverso. Aqui, a morfologia da palavra é modificada conforme o desejo do governo de plantão e para atender a interesses muito particulares de grupos que atuam nas sombras do poder e cujos prepostos ditam as políticas que afetarão a vida de todos.

Para uma parcela significativa da população, tais políticas trazem consigo o peso da indiferença, da exclusão, da retirada de direitos. É como se fossem condenados a penas por algo que não cometeram em detrimento dos ganhos e confortos de segmentos diminutos, mas cujo apetite para se “adonar” do Estado é infinito e voraz.

A avaliação acima faço para falar sobre a próxima “reforma” anunciada pelo governo federal, a Administrativa. Assim como as duas outras feitas – a Trabalhista, por Michel Temer, e da Previdência, por Bolsonaro -, e que foram embaladas pelos discursos da geração de empregos e da solução nas contas públicas, essa também não irá cumprir a sua promessa de transformar o Estado na busca por eficiência, descentralização de recursos e meritocracia nas carreiras dos servidores, conforme palavras do ministro da Economia, Paulo Guedes.

Guedes, precisamos ter bem claro, é oriundo da chamada Escola de Chicago, corrente econômica ultraliberal que defende, às últimas consequências, o livre mercado, a redução do Estado e a canalização dos recursos públicos à iniciativa privada. Essa receita foi aplicada no Chile, após o golpe militar que colocou o general Pinochet no poder. Lá, além de mais de 40 mil opositores mortos pela repressão, o saldo foi uma mistura de salários baixos, aposentadorias insignificantes, ensino universitário pago e um serviço de saúde pública restrito. Por outro lado, o modelo proporcionou o enriquecimento de pequena parte da sociedade.

Se Michel Temer assumiu para “iniciar o serviço” aos donos do dinheiro, a gestão Bolsonaro, admirador de Pinochet, veio para ampliá-lo. Aqui, como no Chile, os proprietários do capital fecharam os olhos aos arroubos antidemocráticos do candidato ao cargo de mandatário do país. E o fizeram em troca do direito de se apossarem do orçamento público, em nome de uma economia de mercado que aceita que um pai ou mãe de família receba menos que um salário mínimo no final do mês e que prima pela retirada do financiamento à saúde e educação e pela impossibilidade de se conquistar uma aposentadoria digna.

A tal “Reforma Administrativa” mira, entre outros pontos, na restrição da estabilidade no serviço público. A iniciativa permitirá que funções realizadas por concursados sejam ocupadas por indicações a partir de interferências políticas. Será o retorno do compadrio entre aqueles que frequentam o poder, os quais terão aval oficial para colocar “os seus” no serviço público sem a necessidade sequer de uma prova de qualificação. Será a capitulação do Estado aos interesses particulares, a legalização do patrimonialismo, seara onde inexiste diferença entre o que é público e privado.

A proposta do governo traz à tona ainda um termo desconhecido para a maioria da população, o da “subsidiariedade”, que, na prática, significa uma espécie de “sinal de “preferência” às empresas privadas para atuarem em qualquer área onde o Estado afirme não poder operar ou não ter condições de funcionar a contento, incluindo aí a saúde e a educação. E, com a flexibilização nas relações entre o Estado e os servidores públicos, outras áreas serão afetadas – previdência, saneamento, etc -, cabendo aos governos atuarem apenas de forma residual. Será que o zelo pelos recursos públicos estará assegurado a partir da abertura dessa “porteira”?

O que a reforma Administrativa trará é o que chamo de independência – e domínio – de grandes grupos privados diante do poder estatal. Desde o período colonial, interesses bastante particulares e setoriais se servem de privilégios e ganhos financeiros junto ao Estado. E agora, esses “atores” parecem atuar para, de forma definitiva, se “adonar” do que ainda resta do “público”. Exemplo maior dessa preparação é a PEC 95, que congelou por duas décadas os investimentos públicos em todas as áreas, incluindo saúde e educação, sendo que, no mesmo período ou em outro qualquer, nenhum centavo foi suprimido do pagamento dos juros e amortizações da dívida pública aos bancos e rentistas privados.

A reforma Administrativa ora proposta prova mais uma vez que, no Brasil, o sentido das palavras pouco importa. Aqui, temos o que o escritor George Orwel chamou de ‘novilíngua” em seu romance distópico “1984”. Por meio dela, o governo autoritário suprimia ou condensava o sentido dos termos com o interesse de controlar o pensamento das pessoas. Por aqui, reforma não aprimora, não qualifica, não combate privilégios. Mas nem por isso deixam de utilizá-la como forma de vender algo que nunca será entregue à sociedade.

(Artigo originalmente publicado no site www.claudemirpereira.com.br)
Arte:

Arte: Edson Rimonatto/CUT Nacional

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