Com a presença de gestores públicos, operadores do Direito, integrantes de universidades e de entidades que atuam em defesa do direito à segurança alimentar e contra a fome, o Teatro Dante Barone da Assembleia Legislativa sediou, nesta quarta-feira, 29, encontro que contou com a parceria do Parlamento estadual (que lançou há duas semanas o Movimento Rio Grande Contra a Fome. unindo poderes de estado, instituições e entidades autônomas numa ação para estimular as doações de alimentos) para promover o debate e discutir a fome e a insegurança alimentar que, pelo menos nos últimos seis anos, vem crescendo de forma vertiginosa no país e no estado. Com a mediação da jornalista Rosane de Oliveira, o colóquio, além do público presente, teve a participação da doutora em sociologia jurídica e especialista em Direito Humano à Alimentação Adequada Miriam Balestro, de Paola Carvalho, diretora da Rede Brasileira de Renda Básica (RBRB), e do economista e professor da Escola de Negócios da PUCRS Ely José de Mattos.
Na abertura, o presidente do Parlamento gaúcho, deputado Valdeci Oliveira (PT), fez sua participação por via remota, a partir de sua casa, em Santa Maria, pois está se recuperando da covid-19. “Esse é um tema absolutamente sério e importante. E neste momento, talvez até mais que a própria pandemia, pois os números da fome, que mais do que simples dados se tratam de pessoas, nos dão a dimensão do que está acontecendo”, afirmou o parlamentar, se referindo aos mais de 33 milhões de brasileiros e brasileiras em situação de extrema pobreza – sendo 1,2 milhão de gaúchos e gaúchas – que sequer tem o suficiente para comer durante o dia. O levantamento nacional foi realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) no contexto da pandemia da covid-19 no Brasil. Se considerados todos os níveis de insegurança alimentar, o problema atinge mais da metade da população, demonstrando que de cada dez famílias brasileiras, apenas quatro têm acesso pleno à alimentação. “Tudo o que for feito para sensibilizar e conscientizar a sociedade é bem-vindo, pois esta é uma causa de todos nós, pois quando se tem uma parcela significativa da população em insegurança alimentar alguma coisa está muito errada. A fome tem pressa e não espera”, avaliou Valdeci, autor, enquanto deputado estadual, de dois projetos de lei em tramitação no legislativo estadual que buscam instituir no RS uma política de renda básica às pessoas em situação de vulnerabilidade social e outro estabelecendo um auxílio emergencial.
Nas diversas colocações, avaliações e observações feitas pelos debatedores e pelos participantes da atividade, o reconhecimento do papel desempenhado por diversas organizações sociais e a importância da sociedade civil em se engajar na causa do combate à fome, mas principalmente a necessidade imperiosa que de haja um resgate das políticas públicas sociais e que o estado brasileiro, nas diferentes esferas – federal, estadual e municipal – cumpra com sua responsabilidade.”É preciso orçamento, políticas públicas. A sensibilidade (da sociedade) é importante, mas o que supera a fome são políticas públicas estruturadas. Imagina o que seria o direito à saúde e à educação só a partir de doações. A caridade é louvável, mas não resolve. A fome foi utilizada em larga escala e como política de guerra pelo nazismo. Com fome e sem trabalho se constroem ditaduras”, avaliou Mirian Balestro, citando o ex-presidente estadunidense Franklin Delano Roosevelt. Balestro lembrou ainda que o Brasil tem uma das melhores legislações do mundo em relação a segurança alimentar, que o tema está previsto no artigo 6º da Constituição brasileira, possui inúmeras leis orgânicas, além de ser signatário de tratados internacionais sobre a questão. para ela, o país “vê hoje um desmonte quase total de iniciativas que receberam premiações internacionais, quase (o equivalente) um Nobel”.
“A fome no mundo, segundo a FAO, organização das Nações Unidas, atingiu 811 milhões de pessoas no mundo durante a pandemia. No Brasil são 125 milhões que não têm acesso permanente (a alimentos) e 33 milhões passam fome. As estatísticas são assustadoras, mas não são estatísticas, são rostos que vemos nas escolas, nas ruas. São números importantes que espero que fiquem na cabeça das pessoas”, assinalou Rosane de Oliveira. Na avaliação de Paola Carvalho, tem-se hoje no estado um grande desafio a ser superado, que é debater a realidade gaúcha. “Temos a cultura de que a fome ocorre só no Norte e no Nordeste, o que ajuda a tornar invisível o problema. Temos 1,2 milhão de pessoas na extrema pobreza e quase 3 milhões vivendo com metade de um salário mínimo per capita. E isso se enfrenta com políticas públicas, com o pobre dentro do orçamento e tratando essa questão como uma realidade aqui do sul do país”, afirmou a representante da RBRB. Segundo ela, na criação do Bolsa Família havia uma série de condicionalidades vinculadas à saúde (calendário de vacinação) e educação (estar matriculados) das crianças para que as famílias acessassem o benefício, mas que nos últimos anos houve uma inversão de valores, uma culpabilização desse público mais carente. “Foi se invertendo, culpando as famílias. Por não terem acesso à saúde, são cortados do programa, assim como, por não terem acesso ao ensino, acabam sendo expulsos da rede de proteção social existente. Se trata de um ciclo que adoece”, explicou.
Já para o professor Ely, “temos de parar de dourar a pílula, pois mais da metade da população brasileira hoje vive com alguma restrição alimentar. E não enxergar esqueléticos nas ruas é fazer pouco da pesquisa (da Rede Penssan). Medidas de longo prazo são muito dependentes do presente, me assusta. O que estamos construindo (no momento em termos de medidas governamentais) é assustador, aterrorizador. Uma coisa que falta é transparência (no sentido de comunicação, informação), deixar claro o que está acontecendo. Se quisermos saber a situação em algum município não sabemos. O Estado é o ente pensante e que organiza as ações. E esse é um desafio aos poderes aqui representados”, defendeu. Ao responder a um questionamento se a resolução do problema não passava também pelo controle da natalidade, Ely explicou que o índice hoje no estado é 1,6 filho por casal, menos do necessário para se manter uma população jovem. E que nas classes E e D, apesar de o número ser superior ele é significativamente menor do que o registrado na década de 1980. Sobre o trabalho desenvolvido por diversas organizações, mas cuja distribuição de alimentos acaba sendo direcionada a entidades melhor organizadas em detrimento de outras, a avaliação é que é preciso que exista uma coordenação dessas ações. ” Isso passa pelos executivos (prefeituras, governos estaduais e federal). Garantir acesso à alimentação é um direito humano, um dever do estado e não um favor. Estamos desafiados a falar cada vez mais sobre isso e trazer a pauta para os orçamentos públicos”, finalizou Paola Carvalho.
Fotos: Joaquim Moura