Porto Alegre sediou nesta quarta-feira (16), no Plenarinho da Assembleia Legislativa, a 11ª e última audiência pública regional que debateu a implementação do piso salarial da enfermagem e as condições de trabalho dos profissionais da saúde em geral. Organizada pela Comissão Especial da Assembleia Legislativa criada para este fim, e coordenada pelo deputado Valdeci Oliveira, proponente do colegiado, o encontro reuniu entidades de classe da enfermagem, gestores públicos, lideranças sociais e políticas, trabalhadores e trabalhadoras da saúde, estudantes, entre outros. No centro do debate, a lei 14.434, aprovada em 2022, que determinou um mínimo salarial de R$ 4.750 para enfermeiros, R$ 3.325 para técnicos e R$ 2.375, para auxiliares de Enfermagem e parteiras, mas que contestada pela classe patronal junto ao STF, este reconheceu a constitucionalidade da proposta, mas impôs diversos condicionantes que dificultam a sua aplicação e geram perdas aos profissionais, com diversas instituições públicas, privadas e filantrópicas interpretado a legislação de forma distinta, desconfigurando seu propósito. Os problemas enfrentados pela categoria acontecem mesmo com o Governo Federal repassando aos estados, via Assistência Financeira Complementar (AFC), os valores para que se chegue ao mínimo previsto. Em 2024, essa transferência alcançou R$ 10,5 bi, e de janeiro a junho deste ano foram R$ 4,6 bi, devendo chegar a R$ 11 bi até o final do ano. O RS foi contemplado com R$ 736 milhões no ano passado. Já os encargos trabalhistas e previdenciários são de responsabilidade dos empregadores.
Relevância da Enfermagem – No encontro, foram apontadas as conclusões e alguns encaminhamentos deliberados nas dez audiências públicas anteriores realizadas desde abril em todas as regiões do estado, como a necessidade da sociedade em geral reconhecer a relevância da enfermagem como maior força de trabalho na saúde pública (60%), fundamental para o cuidado contínuo da população, com destaque para sua composição majoritariamente feminina (85%) e negra, o que traz demandas específicas de valorização e justiça social (no estado são cerca de 160 mil profissionais). Outro ponto que permeou todos os encontros, foram as denúncias e críticas recorrentes à implementação parcial e insuficiente do piso salarial, especialmente pelo uso deste como complemento e não como salário-base, gerando prejuízos à carreira e aos direitos dos trabalhadores, e a fragilidade financeira da política, cujo financiamento pelo Ministério da Saúde está garantido apenas até 2027, o que provoca insegurança para a continuidade e ampliação da medida. As falas dos presentes também trouxeram a questão da defasagem na aplicação dos recursos federais enviados mensalmente a todos os estados para se chegar ao valor determinado, com irregularidades na gestão local, retenção indevida, falta de repasse a hospitais e uso inadequado dos valores para compor o mínimo salarial. A desvalorização profissional e precarização das condições de trabalho, incluindo jornadas excessivas, múltiplos vínculos empregatícios, assédio moral, falta de ambiente adequado para descanso e adoecimento mental frequente (depressão, ansiedade, burnout) foram citados como problemas constantes no cotidiano da categoria. “Os relatos dos trabalhadores e trabalhadoras da saúde no RS vão além do (descumprimento) piso. Temos colegas na região da Fronteira e aqui na Capital dormindo no chão e o projeto de lei do ‘Descanso Digno’ , do deputado Valdeci Oliveira, desde 2017 na ALERGS, ainda não aprovado”, destacou Ismael Miranda, do Sindicato dos Enfermeiros do RS.
Recursos no orçamento – Na questão orçamentária, foram destaque a insuficiência do investimento público na saúde, trazendo como exemplos o não cumprimento do mínimo constitucional de 12% em saúde pelo governo do estado, o que gera uma defasagem anual de R$ 1,2 bi por ano, agravando a crise financeira e limitando melhorias. Na esfera federal, o gargalo apontado é o subfinanciamento do SUS, uma vez que são investidos na ordem de 4% do PIB, quando o mínimo deveria ser pelo menos 7%. Segundo Livia Angeli Silva, coordenadora geral de Políticas Remuneratórias e Planejamento da Força de Trabalho na Saúde do Ministério da Saúde, os problemas vão além. De acordo com a gestora, as principais dificuldades enfrentadas pelos entes federados ao fazerem a solicitação dos repasses incluem ofícios incompletos (sem planilhas ou declarações exigidas); erros de alimentação ou inconsistências na plataforma fonte de informações de repasses, como CPFs inválidos, ocupação incompatível e carga horária superior a 108h/semanais; falta de comprovação formal de jornadas ou vínculos múltiplos; cadastro de estabelecimentos de Saúde inativo ou incorreto ao vínculo informado; solicitações com dados desatualizados, entre outras. “Que bom que esta Casa Legislativa teve essa iniciativa (de criação da Comissão Especial e realização de audiências públicas pelo estado). E que bom seria se Casas Legislativas de outros estados também estivessem nesse caminho para fortalecer a luta de valorização dos trabalhadores da saúde”, afirmou Lívia, destacando que o compromisso do Ministério da Saúde vai além da implementação do piso, “mas da necessidade de se pensar um conjunto de políticas que perpassam a questão remuneratória, mas de outras que se entrelaçam na valorização do trabalhador e trabalhadora da enfermagem como um todo”, destacou, lembrando ainda que a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde precisou ser recomposta do zero por conta do desmonte sofrido em anos recentes. “Para alguns governantes não é interessante fazer gestão do trabalho e valorizar trabalhador. A atual gestão entende que não se faz saúde sem trabalhador da saúde, por isso da recomposição da secretaria e com ela muitos programas e projetos foram retomados”, assegurou.
SUS subfinanciado – Lívia destacou ainda que a emenda constitucional 127/2022, que garantiu a Assistência Financeira Complementar para auxiliar os estados e municípios a cumprirem com o piso não é ‘ad eternun’, que o auxílio não é para sempre. “Já a lei, por ser lei, precisa ser implementada e o empregador tem obrigação de cumprir (com o pagamento integral). Na emenda foi colocado que os entes federados passam a ter o direito de receber uma assistência financeira, dado que a folha de pagamento da saúde impacta muito o orçamento de estados e municípios. Mas até que todos – entes e empregadores – pudessem reajustar os salários das pessoas para que alcançassem o piso. O Fundo Nacional da Saúde não é infinito e fonte extra não está chegando. Na verdade, a assistência financeira complementar é para ser regressiva. O intuito é que os empregadores paguem isso (a complementação) como salário e precisamos deixar de tratar direito como privilégio e privilégio como direito. Mas não se faz isso com SUS subfinanciado. E se a gente brincar em serviço, teremos cada vez mais medidas sendo aprovadas no Congresso que minam o orçamento público e teremos cada vez menos possibilidades de financiar políticas públicas”, explicou. Toda transferência financeira (montante) depende das informações repassadas ao Ministério da Saúde por gestores municipais ou estaduais. Há casos, por exemplo, de repasses retidos por conta de entes que estavam sem fazer a transferência aos trabalhadores por três até meses. Em maio foram nove estados e dezenas de munícipios nessa situação, que só foi revertida após comprovação da regularização dos pagamentos, explicou.
Jornada de 30 horas – Entre os encaminhamentos deliberados na audiência, a continuidade da mobilização política e social, com participação ativa de parlamentares, sindicatos e trabalhadores, em torno da aprovação da PEC 19/2024, que desvincula o piso da jornada de 44 horas e o aplica a uma carga horária de 30 horas semanais (conforme orientado pela Organização Mundial da Saúde), garante a irredutibilidade salarial e estabelece reajuste anual a partir de índice que melhor reflita a variação inflacionária acumulada no período de doze meses imediatamente anterior (quando da aprovação da lei, o governo passado vetou essa possibilidade). Para os profissionais da saúde, é fundamental também que os valores destinados pela União aos gestores/empregadores sejam incorporados ao salário-base e aplicados corretamente na folha de pagamento, eliminando práticas de complementação e distorções (horas-extras ou reajustes negociados em acordos coletivos, por exemplo, resultam em repasse a menos do complemento, pois para muitos empregadores o piso é visto como teto). Também foi aprovado que a produção e envio do relatório final, a ser elaborado pela Comissão Especial, consolidando dados e denúncias feitas nas audiências, deverá ser feita a órgãos federais, estaduais e municipais, Ministério Público, Tribunais de Contas e Casas Legislativas, tanto para o cumprimento da legislação como por garantia de condições dignas de trabalho. A reunião ordinária da Comissão Especial, onde o relatório deverá ser lido e votado, ocorrerá dia 12 de agosto, as 13h, no Espaço da Convergência (Sala Adão Pretto), na Assembleia Legislativa.
Desde abril, já foram realizados encontros regionais em Cruz Alta, Pelotas, Bagé, São Gabriel, São Borja, Cachoeira do Sul, Santa Rosa, Santa Maria, Passo Fundo e Caxias do Sul. Juntamente com as audiências, estão sendo realizadas visitas técnicas em estabelecimentos de saúde públicos, privados e filantrópicos. No início de agosto, integrantes da Comissão Especial deverão ir a Brasília para o cumprimento de agendas junto ao Ministério da Saúde e Senado Federal, quando deverão se reunir com o ministro Alexandre Padilha e o relator da PEC 19/2024, Fabiano Contarato, respectivamente. “Temos a obrigação, enquanto sociedade, de não cruzarmos os braços, pois, além do piso salarial não estar efetivamente sendo pago a esses trabalhadores da saúde, as condições de trabalho a que esses profissionais são submetidos diariamente também são preocupantes”, avaliou Valdeci.
Também participaram da audiência o deputado Pedro Pereira,Daniel Menezes de Souza, vice-presidente do Cofen; Inara Ruas, presidente do Conselho Estadual da Saúde e diretora da Federação Nacional dos Enfermeiros; Valdirlei Castagna, presidente da Confederação dos Trabalhadores da Saúde; Carlos Weber, tesoureiro da Federação Estadual dos Empregados dos Serviços de Saúde do RS; Antônio Tolla, presidente do Conselho Regional de Enfermagem; Antoni Silva Koboldt, da Executiva dos Estudantes de Enfermagem do RS; Alexandre Bublitz, médico e vereador de Porto Alegre; João Gilberto Santos, do Sindicato dos Enfermeiros do RS, além de representantes do SindiSaúde de Caxias do Sul, Associação Brasileira de Enfermagem e Grupo Hospitalar Conceição.