Por Valdeci Oliveira –
Ao completarmos um ano de atividades do Movimento Rio Grande Contra a Fome preferimos não comemorar a data com nenhum festejo, mas com ainda mais trabalho. Até porque não há heroísmo algum em fazer o que nos propomos – e sim obrigação, acredito. Além disso, temos a plena consciência de que o peso sobre os nossos ombros, se existir, é infinitamente mais leve do que o carregado por aqueles e aquelas que têm sobre si e os seus o opressivo fardo – este sim enorme – da pobreza. Assim, preferimos marcar esse momento simbólico com um “Dia D” de arrecadações e mobilizações que resultaram na quebra de um recorde. Foi na última quarta-feira (5), nas dependências da Assembleia Legislativa, quando, ao lado de várias das entidades e instituições parceiras, reunimos mais de 15 toneladas de alimentos imediatamente direcionados à Defesa Civil gaúcha e ao Instituto Ação da Cidadania, um dos movimentos
sociais mais conhecidos e respeitados do país.
Os milhares de quilos de comida, roupas e produtos de higiene e limpeza estão sendo direcionados tanto às famílias atingidas pelo ciclone extratropical como àquelas em situação de insegurança alimentar. E eles se concretizaram a partir de doações espontâneas, que vieram, em parte, de servidores da Assembleia Legislativa, moradores do Centro Histórico da capital, da Universidade UniRitter e da prefeitura de Fortaleza dos Valos. E em outra grande parte, os donativos chegaram de uma robusta iniciativa lançada pelas entidades notariais e registrais do estado. Juntos, o Instituto de Registro Imobiliário, o Colégio Registral, a Associação dos Notários e Registradores, o Sindicato dos Registradores Públicos e a Associação dos Registradores e Notários do Alto Uruguai e Missões, que representam os 774 cartórios gaúchos, garantiram 1.023 cestas básicas para o “Dia D”. E além dessa gigante mobilização, uma empresa gaúcha do setor arrozeiro, que solicitou anonimato, doou outras três toneladas de arroz.
Completar um ano de uma ação coletiva, plural e que visa ampliar o enfrentamento à falta de um prato de comida na mesa de milhares de seres, nos oferta a certeza de que aquela ideia surgida no final de 2021 – e lançada oficialmente na segunda quinzena de junho de 2022 – não era somente um desejo de alguns poucos, mas o de muitos. E o próprio “nascimento” da força-tarefa já foi um evento de extremo êxito, pois aglutinou, de forma inédita, seis potentes instituições gaúchas: a Assembleia Legislativa, o Governo do Estado, o Tribunal de Justiça, a Defensoria Pública, o Tribunal de Contas e o Ministério Público. A partir da união dos poderes do RS, dezenas de outras entidades, de diferentes vertentes político-institucionais, também aderiram à causa. E junto com elas, veio a sociedade, que não apenas compreendeu nossa proposta, como a adotou como sua.
Literal e figurativamente, camisetas foram vestidas, mãos e braços foram estendidos e milhares de irmãos e irmãs tiveram garantidos um pouco da necessária dignidade que nos faz cidadão e cidadã. Sim, a fome é uma questão estrutural, envolve opções políticas, escolhas econômicas e aglutina fatores que estão longe de serem resolvidos apenas pela nossa vontade. Mas a ação emergencial, apesar de não responder a todas as questões, alivia sofrimentos e dá força à resistência daqueles que buscam, mesmo que de forma acanhada, um lugar ao sol.
Porém, e apesar disso, quanto mais o debate for posto em público, quanto mais pensarmos sobre os motivos que resultam na carência de um bem fundamental à vida e quanto mais discutirmos as inúmeras impossibilidades de se transpor as barreiras sociais, mais consciência teremos acerca de algo que está longe de ser natural ou simples má sorte. E é esse debate que o Movimento Rio Grande Contra a Fome busca imprimir em cada conversa feita, em cada quilo de alimento arrecadado, em cada cesta básica entregue. E já foram mais de 250 toneladas desde então.
Chamar a atenção da sociedade para a ausência de comida na mesa de muitas famílias faz parte do trabalho do Movimento Rio Grande Contra a Fome. Mas ele somente se fará vitorioso se cada um e cada uma também tomar para si esta responsabilidade e se as nossas autoridades, sejam elas municipais, estaduais e federais, chamarem para si a responsabilidade da institucionalização da luta contra essa mazela terrível. Felizmente, neste momento, estamos avançando nesse processo, mas ainda há muito a se fazer.
E ao encerrar este artigo, faço questão de agradecer novamente às entidades e instituições parceiras e de manifestar a minha especial gratidão aos milhares de homens e mulheres que de forma anônima se importam com a dor alheia e trouxeram um pouco do alívio a ser levado a quem mais precisa. E não esqueçamos: só temos condições de mudarmos o mundo se antes mudarmos nós próprios. Quem tem fome, tem pressa. Quem tem fome, agradece a quem não cruza os braços a essa realidade inaceitável. E essa caminhada vai continuar enquanto a insegurança alimentar estiver presente.