Artigo – Regras claras para conter a desinformação, o ódio e a discriminação

Por Valdeci Oliveira –

Ao lado das guerras e da pobreza, chagas que continuam a assolar a população mundial em pleno século 21, as fake news pontuam como uma mazela a ser combatida e extirpada da sociedade global. A quem diga que, a exemplo das duas primeiras, tal tarefa não somente é difícil como impossível de ser levada a cabo. Até podemos considerar que, pelas dimensões que possuem, trata-se de uma luta hercúlea ou quixotesca, mas lembremos que esse trio é obra dos homens e não uma força da natureza ou um querer divino. E, por isso mesmo, a manutenção ou não de sua existência ou amplitude é uma tarefa a ser por nós buscada em todo tempo e lugar.

As mentiras e calúnias não são novidades na História humana e foram usadas um sem número de vezes para acabar com reputações, quebrar pactos e dividir nações. Na política e na área corporativa, são uma constante. Da mesma forma, nos conflitos bélicos, onde são utilizadas para trazer a opinião pública para o lado de quem as aplica ou para justificar ações insanas. E as justificativas para isso são as mais diferentes possíveis. E como dizem por aí, o inferno está cheio de boas intenções. Mas o fato concreto é que as fake news permanecem circulando, moldando atitudes e escolhas.

E por aqui, tanto no RS como no país como um todo, as fake news continuam fazendo vítimas, com seus algozes sendo publicamente conhecidos ou se escondendo atrás de perfis falsos no emaranhado que são as redes sociais. Já passamos do tempo de criar regras claras e transparentes, que, se não impedem, pelo menos vão desencorajar e punir quem abre mão desse jogo baixo e sujo. Na verdade, diante de tanto prejuízo já causado a pessoas e instituições, isso era para ontem.

E o mais preocupante, absurdo e surreal, é que o modus operandi desses grupos, seja por meio de inocentes úteis, de usuários conscientes e embevecidos por má-fé, da desinformação ou dos chamados bots (robôs), também é capaz de inverter a realidade, criando um mundo paralelo em que conceitos como democracia, liberdade, verdade e censura ganham contornos outros que não aqueles significados que aprendemos desde que o mundo é mundo.

Um exemplo: no embate entre o bilionário sul-africano Elon Musk, proprietário do antigo Twitter, que já defendeu abertamente golpes de estado caso seus interesses venham a ser contrariados (como no caso da Bolívia e suas reservas de lítio), e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, opiniões criticando o tribunal foram muito maiores em número do que aquelas direcionadas ao empresário no mundo digital.

E isso é assustador se considerarmos que se trata de estrangeiro tentando interferir na soberania de um país, nas suas leis e instituições a partir de acusações há muito provadas serem falsas, uma narrativa, aliás, que levou parcela significativa da população brasileira a trancar rodovias, acampar em quartéis e a destruir as sedes dos Três Poderes em busca de uma intervenção militar. Uma narrativa, aliás, que também buscou justificar uma tentativa, já comprovada, de golpe de estado.

O que também nos choca é ver tal defesa ser feita por ditos patriotas que, como o empresário, defendem ‘direitos’ que extrapolam qualquer nível de bom senso e de humanidade. Para eles, trata-se de uma atitude sagrada o direito de atacar pessoas, de mentir descaradamente, de poder proferir discursos discriminatórios e de ódio (incluindo a morte de opositores ou a execrável ideologia nazista), tudo em nome de uma pretensa liberdade de expressão, como se esta fosse absoluta. E qualquer ação que se posicione contra esse tipo de coisa é chamada de censura.

Mas apesar disso, e aqui novamente a partir de fake news, muita gente embarcou nessa “canoa” que nos leva a um único lugar: o de uma sociedade dividida, baseada em relações moldadas sobre informações falsas ou distorcidas, retiradas completamente de seu original contexto, uma sociedade em que a dor pela morte de um ente querido é chamada de mimimi.

O que instituições como o STF e TSE têm buscado fazer, na ausência de uma legislação que dê conta do tema, é buscar coibir e responsabilizar esse tipo de postura que nada mais é que crime em forma de memes ou opiniões.

Para finalizar: em relação à tese dos ‘patriotas’, não me consta que os países da União Europeia tenham sido acusados de promover a censura e cercear a liberdade de expressão. Lá, desde fevereiro, estão valendo regras nada leves para o funcionamento de redes sociais, plataformas de comércio eletrônico e sites como o Google, exigindo que estes utilizem mecanismos contra a desinformação e o discurso de ódio e utilizem algoritmos capazes de identificar e retirar de circulação conteúdos considerados ilícitos.

Por aqui, enquanto o Congresso Nacional não criar leis que nos protejam desse mal, turbinado pelos bits que trafegam pela internet, cabe a cada um de nós, homens e mulheres, além de checarmos as informações antes de compartilhá-las, lutarmos em defesa de uma sociedade livre de fake news e da relativização da verdade.

 

(Imagem: Dark Stream/Agência Pública)