A cada dia que passa a realidade nos mostra, quase que teimosa, de que não há limites para a falta de traquejo do chefe maior da nação para com as políticas sociais voltadas à população. Da insistência inicial de conceder apenas R$ 200 mensais como auxílio emergencial durante a crise sanitária à tentativa de privatizar o Sistema Único de Saúde foi um passo. Na última quarta-feira (28), o governo foi obrigado a recuar do seu insano desejo de autorizar o Ministério da Economia a iniciar os estudos para entregar à iniciativa privada a administração dos postos de saúde espalhados pelo Brasil, nossas conhecidas UBS. Sim, isso chegou a transformar-se num decreto, assinado pelo presidente da República. E ele tomou essa iniciativa sem ao menos informar o titular da pasta da Saúde, o ministro-general, que, em tese, é o responsável pela implementação de políticas voltadas à área.
Esse ato, um verdadeiro escárnio, principalmente com as parcelas do povo brasileiro que mais necessitam do Estado, traz embutida a verdadeira face do pensamento que embala esse governo, onde tudo é uma questão de custos, dinheiro, mercado. Para os ideólogos que atuam junto a Bolsonaro tudo, até mesmo a vida de milhões, deve estar condicionado a cifras. Um deles é o próprio titular da Economia, Paulo Guedes, detentor de laços íntimos com o governo do Chile do ditador Augusto Pinochet nos anos 1980. A política econômica de Pinochet levou os chilenos – com exceção daqueles que habitam o andar de cima – à penúria em termos de direitos previdenciários, trabalhistas e salariais.
Importante frisar que a desistência momentânea de Bolsonaro quanto ao seu decreto não se deu por uma reflexão mais apurada dele sobre o direito à saúde das pessoas. Ela aconteceu porque houve uma forte reação por parte da sociedade, dos partidos de viés progressista, dos conselhos municipais, estaduais e nacional de Saúde e de centenas de organizações da sociedade civil Diante do tamanho do absurdo que foi a tentativa do presidente de começar a desmembrar e entregar o SUS em fatias àqueles setores que visam apenas o lucro, até mesmo setores liberais vieram a público e criticaram o chefe do Executivo.
Praticamente sem exceção, os secretários estaduais de saúde de todo o país, inclusive das unidades governadas por aliados do capitão, fizeram coro junto àqueles que enxergam o SUS, mesmo com as carências existentes por conta de seu subfinanciamento, como um exemplo a ser seguido em termos de modelo de acesso gratuito e universal.
E o mais impressionante – se é que ainda conseguimos nos impressionar com as falas e atos presidenciais – é que o tal estudo foi proposto justamente num momento em o Sistema Único, diante da pandemia, deu mais do que provas de sua fundamental importância, de que o problema é que ele não atinge todo seu potencial por conta das políticas de cortes e teto de investimentos, como a Emenda Constitucional 95 (EC 95), também conhecida como Emenda da Morte, que vem retirando bilhões da saúde pública a cada ano desde 2017.
Isso aconteceu justo num momento em que praticamente 60% dos leitos de UTI abertos durante a pandemia foram fechados pelo governo, quando a lógica e o bom senso indicam que deveriam ser incorporados definitivamente à rede pública como forma de cobrir um déficit histórico.
O balão de ensaio de Bolsonaro para medir a receptividade de sua ideia de “gênio” se dá em meio a um período de grandes transformações no qual a saúde pública brasileira está recebendo uma merecida, justa e atrasada valorização. De março para cá, a pandemia desnudou muita coisa, da hipocrisia de alguns governantes à firmeza heroica das mulheres e homens que estão na linha de frente do combate ao novo coronavírus. E mais ainda, nos mostrou a relevância e importância do SUS neste momento. Basta ver como se deu o combate à covid-19 nos Estados Unidos em termos de atendimento à população daquele país. Lá não existe SUS, não existe serviço público de saúde, lá é tudo pago pelo paciente que ou tem plano de saúde ou precisa cobrir os custos com seus próprios recursos.
Aqui no Brasil, o Sistema Único fez e está fazendo toda a diferença, apesar das ações em contrário do presidente e da nossa grande desigualdade social. O que o SUS precisa urgentemente é de defesa e fortalecimento Privatizá-lo e retirar do Ministério da Saúde as competências para com a atenção primária é, repito, um ato insano de alguém que, a cada dia que passa, demonstra um despreparo sem fim para ocupar a cadeira no Palácio do Planalto. É um ato grotesco de alguém que elegeu o darwinismo social, em que só os mais fortes têm direito a sobreviver, como centro de sua política.
Na disputa entre Bolsonaro e o SUS, felizmente saiu-se vitorioso o povo brasileiro, que não faz muito perdeu boa parte dos seus direitos trabalhistas e previdenciários. Que o acesso à saúde pública e universal permaneça intacto, pois esse é um dos últimos direitos que resta à maioria dos homens e mulheres do nosso país.
(Artigo originalmente publicado no site www.claudemirpereira.com.br)