Artigo – E se fosse um parente nosso que precisasse um leito em Manaus?

Por Valdeci Oliveira –

A notícia de que o Rio Grande do Sul recebeu pacientes com covid-19 vindos de Manaus (AM) para tratamento em solo gaúcho tem dividido opiniões.  Difícil dizer quantos concordam e quantos rechaçam o apoio oferecido pelo governo estadual. Na verdade, isso – a quantidade – pouco importa. O fato é que foram muitas as vozes críticas a esse ato que eu chamaria, considerando a grave crise pela qual passa o estado do Amazonas, e Manaus em particular, de humanitário.

Diferentemente da Região Sul do país, historicamente mais desenvolvida economicamente, o estado do Amazonas conta com um serviço público de saúde longe de atender a demanda da sua população. Já era assim antes da pandemia. E piorou ainda mais com a chegada dela. Não vou aqui apontar o dedo aos responsáveis por décadas de descaso com o povo amazonense, pois seriam muitos e somente esse artigo não seria capaz de dar conta de tal empreitada. Mas não posso me furtar de citar os acontecimentos recentes que agudizaram ainda mais um sistema já problemático.

A tentativa tardia do governo local de aplicar regras sanitárias básicas (e mais duras) após o aumento exponencial de casos (incluindo a descoberta de uma cepa ainda mais transmissível) está entre eles. Manaus é um exemplo de quando o Poder Público se abstém do seu dever após ser pressionado e se render a parcelas da sociedade contrárias ao distanciamento social, à proibição das aglomerações e a favor da abertura total das atividades sociais e econômicas numa pandemia em que as pessoas se contaminam justamente pelo ar, pelo toque, pelo contato ou proximidade com outros.

A falta de oxigênio hospitalar, essencial para manter vivos os acometidos por casos mais graves de covid, foi a parte mais visível, não a única, de uma tragédia anunciada. Os avisos de que o sistema estava a um passo do inevitável colapso, externados às autoridades públicas tanto pelos profissionais da saúde que estão na linha de frente como pela própria empresa fornecedora do insumo, foram completamente menosprezados. 

Neste momento, mais do que buscar culpados, que espero sejam todos identificados e responsabilizados dentro da lei, o que importa é salvar vidas. Se temos condições operacionais e técnicas para isso, como negar em fazê-lo sem que isso não suje nossas mãos com sangue inocente? Como não estender ajuda a quem depende de um leito hospitalar e tratamento sem que isso não nos iguale àqueles que, no sentido figurado do termo, lavaram as mãos diante do perigo? Como fechar os olhos e ouvidos a pedidos de socorro sem que esse ato retire de nós toda a nossa essência humana? Sinceramente acredito não ser isso possível.

O melhor exercício que podemos fazer numa situação como essa, principalmente se temos alguma dúvida quanto a obrigação ou não de sermos humanos, é nos colocar no lugar de um pai ou de uma mãe que vê seu filho deitado num leito hospitalar, como se ali estivesse apenas esperando o pior chegar (o que infelizmente irá acontecer, mais cedo ou mais tarde). Se não temos uma prole para fazer tal exercício mental podemos usar a figura de nossa esposa, marido, irmão, irmã, pai ou mãe.

Também podemos imaginar sermos nós mesmos aquele ou aquela que se encontra em uma maca, num corredor hospitalar qualquer, sem a atenção ou equipamentos necessários, ali, lutando pela vida e a vendo escapar por entre os dedos porque falta ajuda, porque falta ser levado a um local, não imaginário, mas que existe e possui as condições concretas para fazer a diferença entre continuar ou não vivo.

E nós, de Santa Maria, oito anos atrás, naquele terrível 27 de janeiro, sentimos isso na carne. Ninguém nos virou as costas, ninguém nos negou a tão necessária solidariedade.

A pandemia tem, a cada dia que passa, desnudado as incoerências, os desmandos, preconceitos e os infinitos graus de hipocrisia há muito enraizados em nossa sociedade como um todo. Estava faltando nos mostrar, de forma crua e sem meias palavras, o que somos capazes de ser ou fazer diante do desespero alheio.  A pandemia, como dito por especialistas do mundo todo desde o seu início, é uma guerra. A esse substantivo feminino, somado ao que simboliza a vinda de 32 pacientes de Manaus para o nosso estado, sendo que 15 foram encaminhados para Santa Maria, mais precisamente para o Hospital Regional, me fez lembrar do escritor norte-americano Ernest Hemingway.

É atribuída ao autor do “Velho e o Mar” e prêmio Nobel de Literatura a descrição de um diálogo entre dois soldados. Aquele que parecia ser o mais experiente teria perguntado a outro:  “Quem estará nas trincheiras ao teu lado?”  Seu interlocutor então teria devolvido com um outro questionamento:  “E isso importa?” A resposta do primeiro, e é essa que realmente descreve o que acredito, foi:  “Mais do que a própria guerra”.

Na luta contra o coronavírus, a ciência e a solidariedade devem estar conosco, uma de cada lado, na trincheira diária que se transformou nossa rotina. Elas é que farão toda a diferença. Mais do que a própria guerra.

(Esse artigo foi originalmente publicado no site www.claudemirpereira.com.br)