Artigo: Casa própria é injeção de dignidade

Por Valdeci Oliveira –

Entre os vários títulos que podemos conferir ao ano de 2023, talvez a definição de ‘retomada’ seja, junto à ‘esperança’, a que melhor se encaixa, pois, além de indiscutivelmente necessária, ela é ampla e pode ser direcionada às diferentes necessidades e carências que precisam de respostas resolutivas à população. E, diga-se, depois de quatro anos de aniquilação (em seu sentido amplo) de políticas e programas sociais no país, não faltam segmentos a serem atendidos – e enxergados -, principalmente, pelo governo federal. A tarefa é árdua, sem dúvida. Mas não chega a ser uma novidade, ainda mais se considerarmos que acabar com políticas públicas, como ocorrido, é infinitamente mais fácil do que criá-las e mantê-las.

Entre as ‘retomadas’ a serem colocadas em prática – e anunciadas pelo presidente Lula -, a questão da moradia é mais do que bem-vinda. Além dos milhões que pagam aluguel, vivem de favor ou em condições insalubres em cortiços e encostas, em pleno século 21, ainda presenciamos cenas dignas da baixa idade média, das ruelas dos antigos burgos, repletas de seres que estão longe de viverem a plenitude do que convencionamos a chamar vida digna.

E aquilo que vemos hoje nas ruas, principalmente nas médias e grandes cidades, foi comprovado pelo levantamento realizado pela Universidade Federal de Minas Gerais. A pesquisa, aplicada por técnicos do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, apontou que, de janeiro a maio do ano passado, mais de 26 mil novas pessoas foram registradas, no cadastro do governo federal que dá acesso a benefícios sociais, como vivendo em situação de rua. Se considerarmos outros milhares que sequer estão cadastrados – por motivos dos mais variados -, a cifra tende a ser bem maior. A estimativa era de que, há oito meses, o país contava com mais de 180 mil pessoas vivendo – ou sobrevivendo – nessa situação.

Enquanto país, não nos faltam programas e tratados internacionais assinados que, se preservados fossem, teriam amenizado fortemente a falta de teto dos brasileiros e brasileiras. Só na ONU, há mais de uma dúzia de textos diferentes reconhecendo o direito à moradia, que desde 1948 passou a ser considerado como fundamental pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Desde 2000, a partir da Emenda Constitucional 26, o mesmo está assegurado em nossa legislação maior, indicando competência comum da União, dos estados e dos municípios. É primário, mas numa sociedade em que tudo é precificado, incluindo a vida, ter onde morar apresenta uma série de condicionantes impossíveis de serem atendidas por milhares de famílias. E as razões vão da falta de renda, passando por baixos salários, informalidade, entre outras. E por questões estruturais, pois na prática não é pela falta quantitativa de moradias que as pessoas acabam por morar embaixo de pontes, viadutos, calçadas e ocupações de risco, mas da sua distribuição, da falta de entendimento da sua função social, da especulação imobiliária, para ficar nas mais básicas. Em solo brasileiro, temos hoje algo em torno de 5 milhões de imóveis vazios, ociosos, número pouco menor do que o déficit, avalia-se.

Com a assinatura da Medida Provisória que reestrutura o programa Minha Casa, Minha Vida na última quarta-feira (15), assistimos a volta de uma importantíssima política pública, que atua tanto no fomento econômico – e geração de emprego – quanto no cumprimento de um preceito humano fundamental. A proposta é erguer 2 milhões de unidades até 2026 e retomar imediatamente a construção das que estão paradas – cerca de 130,5 mil sem continuidade ou atrasadas. Aqui no estado, estamos com 2,3 mil imóveis com trabalhos nessa situação e 857 outros com os cronogramas não cumpridos.

Atender as necessidades habitacionais da sociedade – que traz junto uma série de outras, como saneamento, equipamentos públicos e infraestrutura – é uma questão de visão de mundo, de uma escolha política. Para que tenhamos uma noção do tamanho da relevância do anúncio – e também do descaso com o tema -, no mesmo dia da assinatura da MP do ‘Minha Casa, Minha Vida` foram entregues milhares de unidades habitacionais na Bahia, Minas Gerais, Goiás e Paraíba, que estavam com mais de 90% de suas obras concluídas desde 2016 e que foram reativadas e aceleradas nos últimos 45 dias. Outro comparativo importante para que não enxerguemos apenas a árvore, mas a floresta: em 2021, o governo federal, ao mudar o nome do programa e suas regras, fez um corte de 98% no financiamento da chamada Faixa 1, justamente aquela destinada ao público de mais baixa renda.

Sim, ver atendida essa necessidade básica é um sonho que carrego comigo. Como escreveu o uruguaio Eduardo Galeano em seu ‘O Direito ao delírio’, onde ele bem lembra a importância de exercermos o direito de sonhar, apesar de não estar previsto em nenhuma legislação, ‘não fosse por ele (o sonho), e pelas águas que dá de beber, os demais direitos morreriam de sede’.

(Artigo originalmente publicado em www.claudemirpereira.com.br)