Por Valdeci Oliveira
A cada ano, na Quaresma, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB, lança sua
tradicional Campanha da Fraternidade. Desde 1962, o que começou como um pequeno
movimento organizado por três padres para arrecadar recursos a serem destinados ao
atendimento assistencial dos mais pobres, ela nos traz uma mensagem, seja de esperança, seja
para reflexão, seja de cobrança. A deste ano não poderia ser outra que não a do fantasma da
fome, que de sobrenatural não tem nada. De forma direta, essa é a segunda vez que o tema
nomeia a Campanha. A última tinha sido em 1985. Dez anos antes, em plena Ditadura civil-
militar, quando as palavras precisavam ser muito bem escolhidas antes de serem ditas, ela se
mostrou através do “Repartir o pão”. Em diversos outros momentos, a temática esteve
presente, claro, mas não de forma explícita, e sim dialogando com o enunciado ou sob o
guarda-chuva de um principal, mais amplo. Sempre com temas colados à realidade social, com
lemas refletindo as carências e as injustiças vividas por homens e mulheres de carne e osso, já
foram, por assim dizer, destaques causas dos povos indígenas, das mulheres, da juventude,
dos negros e negras, das pessoas idosas, dos encarcerados, dos excluídos. Da mesma maneira,
o foram questões que nos são tão caras como moradia, saúde, educação, segurança, mundo
do trabalho, água, vida e muitos outros.
Ao trazer a questão da fome ao centro da sua mensagem, a CNBB nos mostra a urgência, o
alerta social de que não podemos fechar os olhos. Mas também nos mostra que, como bem
escreveu a Irmã Lourdes Dill, em artigo publicado na última quarta-feira (22), citando uma
frase do Betinho, “a alma da fome é política”. Prova disso é que, depois de estar próxima de
ser debelada no Brasil, ela novamente nos mostra a cara e apresenta garras que têm alcançado
um número cada vez maior de pessoas. E voltou não por ordem da natureza ou pela escolha
de quem foi colocado à margem, empurrado a uma situação degradante, mas por decisões
que englobam tanto o nosso voto quanto às posturas governamentais.
A pandemia pessimamente conduzida por quem tinha a principal obrigação de contê-la, o
desarranjo oficial de diferentes políticas públicas, a perda de uma série de direitos sociais e
trabalhistas, tudo moldado por uma política econômica que nos últimos seis anos favoreceu
poucos e pequenos nichos, já privilegiados em nossa sociedade, estão na gênese do prato e do
estômagos vazios.
Mas, pasmem, a Campanha da Fraternidade vem sofrendo forte oposição de setores
ultrarradicais e de extrema-direita católica que pedem que as pessoas não se envolvam nem
colaborem com a ação. É importante lembrar que o gravíssimo fato do país ter voltado ao
Mapa da Fome da ONU é que fez com que a Campanha da Fraternidade novamente colocasse
esse assunto em pauta. Não tivéssemos tal urgência, talvez fosse o momento de repetir – como
resposta às inúmeras insanidades que culminaram no 8 de janeiro e na tentativa de golpe de
estado com a destruição das sedes dos Poderes, em Brasília – a campanha de 1996, que trazia
“A Fraternidade e a Política – Justiça e Paz se abraçarão!”. Porém, infelizmente, não será desta
vez.
O momento, como tenho defendido, é de cerrarmos fileiras, fortalecermos as ações,
debatermos enquanto sociedade uma saída para algo que é inaceitável sob qualquer aspecto.
O momento é de exigirmos dos gestores públicos posições claras e objetivas que deem conta
de garantir a cada homem e mulher três refeições decentes por dia e que nossas crianças
ingiram os nutrientes suficientes e necessários para sua formação física e cognitiva.
Temos, o quanto antes, de colocarmos no passado – sem nunca esquecer – as cenas em que
seres humanos se comportam como verdadeiros animais atrás de ossos, em que uma mãe
mistura restos de farinha a um pouco de água para dar de comer aos seus. Temos, de uma vez
por todas, que encharcar corações e mentes de solidariedade em favor da dignidade da pessoa
humana. E é isso que a campanha da Fraternidade destaca nesse 2023, é isso que me
proponho construir, seja na atuação parlamentar ou nas articulações junto ao Movimento Rio
Grande Contra a Fome, que não se furtará a mais este chamamento da CNBB e que desde já
toma para si o lema deste ano, tirado do Evangelho de Mateus: Dai-lhes vós mesmos de
comer.
(Artigo originalmente publicado em www.claudemirpereira.com.br)