Por VALDECI OLIVEIRA
Poucas são as datas em que lembramos exatamente onde nos encontrávamos e o que estávamos fazendo naquele exato momento. Na madrugada de 27 de janeiro de 2013, eu dormia em um quarto de hotel na cidade de Santiago, onde cumprira uma série de atividades no dia anterior. Naquela noite, de súbito, fui acordado pelo barulho que imaginei ser o do bater de asas de pombos. Com o som, também senti um incômodo, uma estranha sensação de angústia, uma espécie de calafrio na espinha. Abri a janela e nada vi. Passados poucos minutos, meu telefone tocou e veio a notícia: um incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria, a cerca de 150 quilômetros da onde eu estava, havia interrompido a vida 50 pessoas. Saberíamos depois que esse seria um quinto das vítimas. À minha mente, ainda um pouco confusa pelo sono e pelos fatos, vieram as aflições, pois a gravidade do ocorrido era enorme e eu sabia que, naquela noite, alguns familiares jovens e outros conhecidos lá estariam. Ao mesmo tempo em que jogava meus pertences dentro de uma bolsa, falava com minha esposa, que me pedia calma, pois os meninos e meninas da família Oliveira não tinham ido à boate.
Em pouco mais de uma hora, o meu motorista concluiu o trajeto Santa Maria-Santiago. Em frente ao palco da tragédia, ainda não acreditando no cenário de destruição que observava, pedi que aquilo fosse apenas um pesadelo. Não era.
Em respeito às mães, pais, irmãos e avós das inocentes vítimas – assim como aos sobreviventes dessa tragédia que poderia ter sido evitada – não vou relatar aqui o que vi e ouvi dentro da boate. São imagens, sons e cheiros que me acompanharão pelo resto da minha vida e que volta e meia povoam meus pensamentos. Mas nada comparado ao drama das famílias daqueles jovens. Sou pai e avô, e mesmo assim, não consigo imaginar sequer um décimo do que passaram e continuam passando, após esses sete longos e injustos anos, os entes das vítimas. Até hoje, eles aguardam uma justiça que não chega, que vem sendo constantemente adiada, que não lhes é oferecida nem mesmo para lhes confortar o espírito.
De forma absurda, que vai contra toda experiência humana e sua respectiva capacidade de crescer com seus fracassos e erros, esse repugnante e inaceitável episódio nos mostra que não aprendemos nada com ele. Nos mostra que cada uma das 242 vidas ceifadas precocemente, assim como os quase 700 sobreviventes traumatizados e que vivem com graves sequelas, vale menos dos que os interesses econômicos envolvidos – e aflorados – nesse caso. Nos mostra que corremos o risco de criarmos uma espécie de sociopatia coletiva, em que a frieza, a indiferença, o desinteresse pelo outro e a falta de qualquer sentimento tomem o lugar daquilo que convencionamos chamar de humanismo – ou de humano.
Sim, a tragédia da Boate Kiss está jogando por terra muitas máscaras vestidas na época, mostrando que muitos lamentos e lágrimas o foram apenas por formalismos, por obrigação social, por estar diante das câmeras de TV, por força ou imposição dos cargos públicos ocupados.
Está mostrando que a evolução humana é algo relativo e evidencia que a balança da Justiça, não de hoje, pende para o lado mais forte, que a primazia do lucro está acima da vida, que as leis devem ser cumpridas e aplicadas apenas por e para alguns.
Nos mostra também que se é verdade que todos somos iguais em direitos e obrigações, alguns são “mais iguais” do que a maioria.
Nos mostra que esse crime – que esfacelou famílias inteiras, que jogou pais e mães na vala da depressão profunda e no desejo constante do suicídio e que atirou negativamente Santa Maria no noticiário mundial – parece não ter sido grave o suficiente para que os culpados tenham cara e tenham nome. E é com isso que muitos contam.
Mas, felizmente, não são poucos os que lutam para que a memória não desapareça, para que cada lágrima derramada seja reconfortada, para que cada minuto de luto venha a ser compensado com a chamada lei dos homens, para que a legislação criada no parlamento estadual, e que leva o nome Kiss em seu epiteto, não seja mais adiada em sua aplicação e muito menos deformada e afrouxada sob o argumento de que se adaptar a ela é muito caro e dificultoso aos negócios.
E numa conjuntura absurdamente ilógica como essa precisamos nos posicionar. Não sejamos nós os cúmplices desse crime, não sejamos nós os responsáveis pelo esquecimento dessa verdadeira chacina juvenil, não sejamos nós a oferecer as mãos para que fiquem sujas de sangue, não sejamos nós a compactuarmos com os acordos do andar de cima que buscam deixar as coisas como estão.
Há muita dor, frustação, medo e tristeza em jogo. Há muita lágrima ainda a ser derramada. Há muito ainda a ser feito. A cada dia que passa temos a obrigação de demonstrarmos que não perdemos nossa capacidade de buscarmos a justiça e a reparação de direitos.
Não fazê-lo é aumentar a dor e desrespeitar a memória das vítimas, falecidas ou não.
(Foto: Dartanhan Baldez Figueiredo )