Artigo – A democracia sob sequestro

Por Valdeci Oliveira –

Tem um provérbio espanhol que diz ‘Cría cuervos y te sacarán los ojos’. Em tradução livre, “Crie corvos e eles te arrancarão os olhos”. O espetáculo deprimente e vergonhoso que assistimos nos últimos dias no Congresso Nacional, onde desqualificados, eleitos democraticamente – em urnas que, neste caso, ‘funcionaram perfeitamente’ -, invadiram o plenário da Câmara dos Deputados e ‘sequestraram’ os assentos da Mesa Diretora daquela Casa (e também do Senado). E com isso, não permitiram a realização da abertura dos trabalhos legislativos neste segundo semestre, o que talvez seja um exemplo da máxima criada no país de Cervantes e posta em prática por aqui.

A verdade é que nós, enquanto sociedade, enquanto instituições da República brasileira, muito toleramos e, de certa forma, fizemos pouco caso para algo que vinha sendo sinalizado: a tentativa de corroer nossa democracia a partir de dentro, participando e se aproveitando dela.

Por outro lado, existe resistência, a sociedade vem se mobilizando contra tais desmandos e há o claro entendimento que os nossos pesos e contrapesos, leis e a própria democracia são, junto com a vigilância e organização da sociedade, suficientemente capazes de manter esse agrupamento de celerados sob controle, limitados a seu nicho de eleitores e às suas propostas que vão contra qualquer senso de civilidade e humanismo.

Depois do 8 de Janeiro e tudo o que o envolveu, o que tentam agora é a blindagem e a impunidade de todos os envolvidos- principalmente o verdadeiro beneficiado daquela tentativa de golpe de estado e assassinato de autoridades a atentados a bomba, entre outras sandices – incluindo seu planejamento e operação. E isso, deixaram claro na tentativa de capitulação das lideranças do Congresso Nacional. Aliás, o mesmo preço cobrado por outro sequestrador, este da nossa soberania, o presidente dos Estados Unidos, que lhes dá guarida e, como toda prática miliciana, proteção.

Ainda assim, o Brasil tem dado inequívocas mostras que não aceita nem aceitará tamanha desenvoltura criminosa, mesmo que em alguns momentos pareça que ainda não chegamos ao fundo do poço e criminosos continuem a praticar seus delitos sob o manto da imunidade parlamentar. Definitivamente, o Brasil e o seu povo não merecem tamanho infortúnio, visto que estamos vivenciando bons momentos, como praticamente o pleno emprego, o aumento da renda e a saída do país do Mapa da Fome da ONU, pela segunda vez e novamente com o trabalho do presidente Lula.

E mesmo num cenário que para alguns as leis pouco importam, onde o grito vale mais do que o voto e a força bruta se sobrepõem à autoridade e à racionalidade, a Democracia brasileira continua a disputar o jogo, mesmo um dos lados desrespeitando às regras, acordos e regimentos.

Aliás, a sociedade brasileira tem apontado, em pesquisas de opinião, que não aceita ficar à beira de um precipício chamado, na filosofia política, de ‘estado de natureza’, em que os instintos humanos mais básicos, primais até, na forma de paixão animalesca afloram, vigoram. E com ele o conflito generalizado, o cada um por si, o todos contra todos, em que a voz do mais forte é a única a ser ouvida e seguida.

Por isso, não aceitamos jogar por terra séculos de conhecimento, evolução e amadurecimento intelectual, como se o Iluminismo nunca tivesse existido, não passando de um desvario coletivo. As cenas registradas pelas câmeras de TV no Congresso Nacional nos mostraram aquilo que a sociedade brasileira repudia, o que certamente também indica que nesse jogo os antidemocráticos e antipatriotas estão perdendo de 7×0.

O que testemunhamos nesta semana em Brasília foi a continuidade do ‘modus operandi’ que vem sendo aplicado desde que esse grupo perdeu nas urnas, a ação de elementos sem apreço algum à política com ‘P’ maiúsculo, sem desejo ao diálogo ou disposição para atuar num ambiente plural. Escudados por nação estrangeira, acreditam possuir carta branca para impor as vontades de seu grupo sobre o real desejo da maioria do povo brasileiro que quer discutir pautas como isenção de imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil mensais, redução da jornada de trabalho baseada na equação 6×1, controle da inflação, manutenção da queda do desemprego, ganho real na renda, mais acesso à saúde, à universidade, ao trabalho e salários dignos.

Se Trump tentou sequestrar a nossa soberania pedindo como resgate a cabeça de um ministro da nossa Suprema Corte, eles, a extrema-direita brasileira, tentaram sequestrar a nossa democracia para obrigar o país a pagar com a impunidade elementos seus comprovadamente criminosos. Tentaram, mas deram com os burros n’água.

Temos resistido e continuaremos a resistir, pois o Brasil é dos brasileiros.

Foto: José Cruz/Agência Brasil