Por Valdeci Oliveira
A democracia, ao contrário do que muitos pensam, é um sistema frágil e que precisa de zelo, atenção e defesa cotidianos. Também é um sistema que pressupõe certo conhecimento sobre o seu funcionamento. E não me refiro apenas ao seu caráter político eleitoral, representativo, em que escolhemos aqueles e aquelas que irão governar e legislar. Democracia é algo muito mais amplo, presente nas mais diferentes camadas das relações sociais. O oposto disso são as sociedades autoritárias, em que o conjunto da população delega – ou em certo grau aceita como imposição – a um indivíduo ou grupo dirigente os destinos sobre seus direitos e garantias fundamentais. Nelas não é preciso pensar, muito menos questionar.
Dito isso, acredito, pois a realidade insiste em demonstrar, que estamos há algum tempo no Brasil assistindo a repetição de uma série de episódios extremamente nocivos a nossa tão jovem democracia, entre elas a prática quase que diária em que governantes – no poder justamente por ela existir – desferem ataques a veículos de comunicação e a jornalistas. Esses últimos de forma mais covarde, pois, ao contrário das empresas, que possuem departamentos jurídicos organizados e recursos financeiros significativos, são trabalhadores e trabalhadoras cuja única “culpa” é exercerem sua profissão.
O mais recente exemplo dessa nefasta prática de intimidação ocorreu no início desta semana durante audiência na Câmara dos Deputados da Comissão Parlamentar Mista de inquérito (CPMI) das Fake News, que busca apurar a disseminação de notícias falsas pelas redes sociais, ataques às instituições e as denúncias de disparos em massa, principalmente via aplicativo WhatsApp, patrocinadas por grandes empresários em 2018 em favor de campanhas políticas nas últimas eleições presidenciais.
Durante a audiência, ao ser inquirido pelos parlamentares, o depoente, Hans River Nascimento, ex-funcionário da empresa Yacows, acusada de tal prática, não somente negou sua realização e todo o teor de uma entrevista que concedeu como fonte, como acusou a jornalista Patrícia Campos Mello, profissional do jornal Folha de São Paulo, autora da matéria que desnudou esse sistema ilegal, de ter proposto favores sexuais em troca de informações. Diante de tal absurdo, Patrícia prontamente disponibilizou gravações e os conteúdos das trocas de mensagens feitas com Hans River que embasaram sua matéria, demonstrando que o depoente dera um falso testemunho à Comissão.
Mesmo diante das provas, o filho do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro – que assim como os demais membros do clã é um notório compartilhador das mais absurdas fake news – saiu em defesa do depoente afirmando não duvidar que a repórter tenha se insinuado sexualmente para obter as informações. Uma postura que choca, mas não nos surpreende.
A atitude do parlamentar em nada difere daquelas do seu próprio pai, que, cotidianamente, nos encontros com jornalistas que fazem plantão em frente à residência oficial da Presidência da República, após receber questionamentos que não o agradam, xinga a mãe dos profissionais, os manda calar a boca, diz que eles têm “cara de homossexual terrível”, que são uma raça em extinção ou manda uma banana antes de entrar em seu carro oficial.
Mas, no caso de Patrícia, há dois outros ingredientes, ainda mais repulsivos: a misoginia e o machismo, características típicas de homens inseguros diante do sexo oposto. Esses aspectos, que nada mais são que um forte desvio de caráter, principalmente entre aqueles que acreditam que as mulheres são seres de segunda classe e que nascem a partir de fraquejadas, está entranhado no pensamento de extrema-direita, espectro político intrinsecamente presente nos vários escalões do executivo federal, principalmente junto a chamada ala ideológica do governo.
Confrontar e assediar jornalistas nas redes sociais via fake news, mentiras e calúnias espalhadas em série e maciçamente compartilhadas por robôs digitais e perfis falsos é antes de mais nada um crime previsto em lei. Mas também é uma clara tentativa de mordaça, de censura, de calar a boca de quem escreve textos – ou faz perguntas – incômodos. O preocupante, neste caso, é que o linchamento virtual de profissionais da imprensa, que vem se mostrando cada vez mais frequente, é endossado pelo mandatário máximo do nosso país. Assim, seus seguidores se acham no direito – e até mesmo no dever – de fazer o mesmo.
Num país verdadeiramente democrático, os autores desses delitos têm de ser identificados e responsabilizados.
A nossa democracia merece mais respeito. Sem democracia é a barbárie.
(a foto que ilustra o artigo é uma imagem de Hans River em depoimento à CPMI das Fake News. Crédito: TV Câmara / Reprodução)