Por Valdeci Oliveira –
Das tristes coincidências da vida, este artigo sai um dia depois do Dia das Crianças e em meio a avassaladora onda de violência que está a destruir e a tirar a vida de milhares de israelenses e palestinos – homens e mulheres, de bebês a idosos.
Para um dramaturgo da antiga Grécia chamado Ésquilo, numa guerra a primeira vítima sempre será a verdade. A esta máxima já estamos acostumamos e, de certa forma, preparados. Basta um pouco de senso crítico e certa dose de informação séria – além de se colocar no lugar do outro e se despir das paixões ideológicas. Tarefa difícil, mas possível.
O que a racionalidade humana não supera é ver crianças vítimas da insensatez de um conflito bélico. Imagem icônica da Guerra do Vietnã, tirada em 1972 pelo fotógrafo Nick Ut, aquele clique definiu os anos de atrocidades numa fração de segundo. Coberta por resquícios de napalm trazidos pelas bombas, uma menina vietnamita corria nua por uma estrada em busca de ajuda e trazia no rosto o desenho da dor provocada pela queima do seu corpo.
Ao autor da imagem foi concedido o Prêmio Pulitzer de fotografia, distinção máxima. E ao mundo aquele retrato do desespero serviu para colocar em frente aos seus olhos o resumo do horror vivido pela população civil e fez com que as últimas máscaras da hipocrisia caíssem ao chão. Não havia ali uma justificativa aceitável ou alguém para defender o tipo de discurso que busca relativizar algo tão bizarro.
O que temos assistido nos últimos dias são pais e mães de origem judaica e palestina carregando em seus braços, em meio a destroços, pequenos corpos inertes daqueles que um dia juraram a si próprios proteger. O que temos assistido nos últimos dias é a ordem natural da vida tendo sua visão embaçada por conta da violência e da injustiça e com isso tomando rumo inverso.
Na guerra, a ordem natural perde sua direção e coloca os genitores a sepultarem seus filhos. Se soldados, esta mesma ordem dribla a mente e faz com que o aceite seja, talvez, menos doloroso. Se crianças, temos a certeza de que a bestialidade, sem limites ou rédeas, é que dá o tom desta valsa macabra, cujos volteios alguns são obrigados a dançar. Outros, como nós, a assistir impotentes, incrédulos e rezando para que nunca passemos por algo sequer próximo.
Ontem, em Israel e na Faixa de Gaza, não houve Dia das Crianças, presentes não foram dados, pacotes embrulhados em papel colorido com motivos festivos não foram abertos e sorrisos estampando os pequenos rostos foram substituídos por expressões de medo e dor.
E já tem muito tempo que para essas crianças, principalmente aquelas cujo cotidiano é feito de enormes carências, o mundo dos adultos lhes parece ainda mais confuso e incompreensível, um lugar que certamente não desejam viver.
Se os rumos de suas vidas dependessem apenas delas, desejariam, mesmo sem saber da existência de um personagem criado no início do século passado, nunca crescer e viver na Terra do Nunca. Lá, como Peter Pan e seus amigos, apesar das aventuras envolvendo índios, piratas e animais da floresta, estariam longe das bombas, da destruição. E no caso dos pequenos palestinos, também distante da fome, da falta de água, de acesso à saúde e à educação.
Crianças de qualquer parte do mundo, de raças e com divindades diferentes a adorar, merecem paz e comida, a enxergar as cores e cheiros da infância, do amor, da proteção. Precisam de vida, do direito de crescer, de sentir na boca o gosto doce das guloseimas, assistir com seus pequenos olhos a desenhos animados, brincar de carrinho, de boneca, de bola, pular corda, jogar Cinco Marias. Criança tem o direito – e a nós cabe o dever de garantir – a viver a sua inocência, de ser compreendida em seus conflitos e medos, ser acolhida, abraçada. A elas nossas mãos precisam estar sempre estendidas e os nossos braços livres para enlaçá-las mesmo quando não for necessário. E da nossa boca não podem sair palavras de ódio, mas de apoio e orientação.
E é em nome dessas milhares de crianças árabes e judias que o mundo dos adultos precisa agir. A conjuntura nos mostra ser de fundamental importância a proposta do presidente Lula feita junto ao Conselho de Segurança da ONU, presidido pelo Brasil neste momento, para a imediata criação de um corredor humanitário que garanta a saída segura das pessoas de Gaza e que permita a entrada de mantimentos e remédios na região, cuja população civil não é a responsável pelo conflito, mas a que paga a maior parte da conta.
A agudização dos embates mostra que estamos sem tempo e que a razão e os traços de humanidade que ainda restam nos corações dos líderes das nações mais poderosas da Terra precisam dar sinais de que merece algum crédito. Caso contrário, continuaremos a ver a dor de um pai, incrédulo e com o olhar vago, carregando junto ao peito o corpo sem vida de seu pequeno filho, cujo braço, sujo de fuligem e sangue, repousa caído em direção ao solo, balançando como se de pano fosse feito.
Como dizia Gandhi, não existe caminho para a paz, a paz é o caminho.
Foto: Getty Images / BBC News Brasil