Artigo – Parlamento Gaúcho tem portas abertas à luta antirracista

Por Valdeci Oliveira –

Na última quarta-feira, 17, a Assembleia Legislativa realizou sua Sessão Solene em alusão ao Dia da Consciência Negra, quando o Parlamento gaúcho concedeu a entrega dos Troféus Deputado Carlos Santos e das Medalhas Zumbi dos Palmares, nomes que dispensam apresentações, da mesma forma como são importantes, são orgulhos e são caros para a luta e a história das negras e negros deste estado e país.

A solenidade, feita anualmente, busca reconhecer o enfrentamento contra a discriminação e o racismo por aqueles e aquelas que, de alguma forma e em suas respectivas áreas de atuação, se mostram atuantes num movimento de resistência, mulheres e homens que muito lutaram, cotidianamente lutam e muito ainda lutarão para que o 20 de novembro seja um dia de reflexão e chame a atenção da sociedade para seu próprio comportamento e postura diante de algo inaceitável e criminoso que é o racismo. Mas que seja uma reflexão feita durante os 365 dias do ano. Falo aqui de homens e mulheres, do recém-nascido ao mais idoso, a mais longeva mulher preta, que trazem na memória todo um processo de luta, de conquista de espaços e respeito numa sociedade por vezes guiada pela injustiça e o preconceito.

Ao realizar a cerimônia, o Parlamento estadual também emite inúmeras mensagens, entre elas a de que não se aceite, em hipótese alguma, que uma figura da República, durante uma sessão do Senado Federal, faça um gesto utilizado por supremacistas brancos norte-americanos e incorporado por seus pares em diferentes países, como o Brasil. Um gesto que, utilizando os dedos de uma das mãos, forma as letras W e P, a sigla em inglês para “Poder Branco”.

A homenagem é um pedido para que não se aceite, muitos menos se normalize, cenas abjetas como a registrada num programa de um site apoiador do governo federal, cujo apresentador serve copos com leite aos convidados e solta a frase “os entendedores entenderão”. Para quem não sabe, servir leite fora das condições e ambientes normais, também é um símbolo utilizado por aqueles que acreditam na superioridade racial. Usam o alimento para ilustrar o conceito falso de que as pessoas brancas o digerem melhor do que as de outras etnias, principalmente os negros e negras, ideia disseminada em fóruns de discussão da extrema-direita segundo estudos de entidades que atuam no monitoramento de discursos extremistas e de ódio na internet.

Coincidência ou não, dias antes o próprio presidente fez o mesmo, com a desculpa de apoiar a indústria leiteira, em sua tradicional live pelas redes sociais, o que levou o site e inúmeros outros apoiadores seus a fazerem o mesmo. Pode até ser que o sentido fosse esse mesmo, de apoio à produção, mas casou bem com os seus discursos racistas, por ser contra as cotas raciais, por já ter se referido a quilombolas como gado, por já ter feito inúmeras piadas do mais puro mau gosto e por ter dito que seus filhos não se apaixonariam por uma mulher preta, pois “foram muito bem educados”.

A atividade realizada pelo Parlamento também embute a mensagem de que todos devem cerrar fileiras em defesa da verdadeira paz, aquela em que ninguém é excluído, marginalizado ou morto por conta do tom da sua pele. E um recado duro às diversas formas de racismo, sejam econômicas, políticas ou sociais, e que todos, não uns mais que outros, têm direito à cidadania, ao emprego digno, a salários equivalentes, à escola, à saúde.

A premiação deve ser vista como um forte repúdio a casos como o de João Alberto Silveira Freitas, espancado até a morte por seguranças de um supermercado na capital; do engenheiro Gustavo Amaral dos Santos, morto em uma barreira policial em Marau depois que um policial militar o confundiu com um criminoso; do angolano Gilberto Almeida, baleado e preso quando em férias no país e tratado como bandido perigoso por não ser branco; da técnica de enfermagem negra agredida verbalmente em Pelotas por um homem descontente por ela apenas cumprir o seu trabalho. A cerimônia deve ser lida como um gesto para não deixar dúvidas de que as vidas negras do músico Evaldo dos Santos Rosa e do catador Luciano Macedo, retiradas com mais de 200 tiros disparados por militares na cidade do Rio de Janeiro, importam e pedem justiça.

O troféu Carlos Santos e a Medalha Zumbi dos Palmares são mais do que homenagens, são uma mostra de que a Casa Legislativa estará sempre de portas abertas às diferentes representações da negritude e um prenúncio de que lá haverá, muito brevemente, um espaço permanente de discussão, de estudo e de valorização dos Lanceiros Negros, por vezes sem o devido valor quando falamos da nossa História.

As condecorações entregues na última quarta-feira são o reconhecimento à luta cotidiana de negros e negras por igualdade. E não haverá igualdade sem a superação do racismo estrutural ainda cravado no Rio Grande, no Brasil e no mundo. Combater o racismo é dever de brancos e pretos, de brancas e pretas.

Viva Zumbi, viva Dandara, viva João Cândido e viva Carlos Santos.

Artigo originalmente publicado no site www.claudemirpereira.com.br

(Imagem: ABRASCO – Associação Brasileira de Saúde Coletiva)