Por Valdeci Oliveira –
Neste mês de setembro, celebramos os cem anos do nascimento de duas figuras ímpares e cujos nomes estão, para sempre, inscritos em nossa História. No dia 14, foi o centenário de Dom Paulo Evaristo Arns, e, no dia 19, o de Paulo Freire. Cada um ao seu modo e a partir de tarefas distintas, ambos são reconhecidos justamente por defenderem a liberdade, a democracia, os direitos civis e a inclusão social, pontos que vemos a cada dia que passa serem esculhambados e retirados do seu sentido. Se estivessem vivos, não se calariam diante de tantos desmandos, da falta de empatia, da inexistência de humanidade e solidariedade que hoje povoa os palácios do Planalto Central brasileiro.
Estivessem vivos, esses dois “Paulos” estariam com a ciência, preocupados com a fome dos mais pobres, enojados pelos discursos de ódio, incrédulos diante do incentivo governamental de armar a população ao mesmo tempo que lhes nega um prato de feijão. Não tenho dúvida de que esses “Paulos” fariam campanha pela vacinação da população, defenderiam com unhas e dentes a concessão de uma renda básica aos mais vulneráveis e não colocariam em dúvida nosso processo eleitoral. Ambos não se furtariam de estar na resistência à insanidade política hoje posta, não se calariam diante das arbitrariedades fardadas nem das posturas anticivilizatórias mostradas quase diariamente junto ao cercadinho instalado na entrada do Alvorada.
Dom Paulo dedicou sua vida e atuação na pastoral voltada aos homens e mulheres das periferias e aos trabalhadores, assim como à defesa diuturna dos direitos da pessoa humana, o que lhe rendeu, ainda em vida, o título, mesmo que não oficial, de Cardeal dos Direitos Humanos. Foi dele a ideia de criar a Comissão Justiça e Paz de São Paulo e buscar a parceria com a comunidade judaica para que lutassem contra as atrocidades sofridas pelos opositores ao regime militar e pela volta da democracia em solo brasileiro. O religioso esteve à frente, junto com a sociedade civil, de outro importante projeto, transformado em livro e que ficou conhecido como “Brasil: Nunca Mais”, garantindo que milhares de documentos relativos à ditadura não desaparecessem como centenas de brasileiros e brasileiras.
O levantamento, feito entre o final dos anos 1970 e metade da década seguinte, mostrou, de forma crua e didática, a tortura política implementada como método por aqueles que ficaram à frente do país a partir de 1964. Em tempos de fake news, é importante destacar que todo o trabalho teve como base documentos oficiais, principalmente processos do Superior Tribunal Militar.
E para que esse esforço não fosse esquecido, Dom Paulo se entregou a outra missão, o movimento Tortura Nunca Mais. Se hoje o enfrentamento a práticas de tortura é algo considerado óbvio e normal, devemos agradecer a Dom Paulo e ao pastor presbiteriano Jaime Wright, parceiro de Arns na empreitada.
De Paulo Freire, o mais respeitado e reconhecido educador brasileiro no exterior, temos a lição de, enquanto sociedade, refletir sobre o papel da educação como um direito de todos e uma obrigação do Estado e o seu caráter transformador, público e universal. Patrono da educação brasileira, título que vem sendo atacado pela extrema-direita com o intuito de colocar em dúvida a importância de suas teses e práticas, Paulo Freire continua sendo o nome mais citado em trabalhos acadêmicos elaborados em universidades do mundo inteiro quando o assunto é alfabetização. Por isso, choca ver tanto ódio que alguns segmentos insistem em alimentar e a ligar ao seu nome, como se ele, e não os governos, fosse o responsável pela qualidade do ensino brasileiro.
Para Paulo Freire, se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda. É dele também a frase que diz que o sistema não teme o pobre que tem fome. Teme o pobre que sabe pensar. E falando em pensar, o contexto de desmonte da educação que impera lamentavelmente hoje no Rio Grande e no Brasil, simbolizado pelo não investimento nas nossas escolas e nos nossos professores, é a fórmula empregada para que o povo, principalmente nossos jovens, não reflita, não tenha consciência dos seus direitos, não entenda o que é cidadania.
As posturas contrárias aos ensinamentos e às posturas dos dois “Paulos” talvez expliquem muita coisa que vem acontecendo hoje no RS e no Brasil.
Artigo originalmente publicado no site www.claudemirpereira.com.br