Por Valdeci Oliveira –
As inúmeras cenas de pessoas posicionadas nas janelas das suas residências estendendo panos brancos, aplaudindo e agradecendo aos profissionais da saúde pela defesa firme da vida de todos e todas causou emoção mundo afora e nos fez pensar um pouco mais sobre esta verdadeira guerra que travamos contra a covid-19. Os homenageados integram um grupo de mulheres e de homens, abnegados, que por conta da profissão que exercem, precisaram, em muitos casos, se afastar ou restringir ao máximo o contato com suas famílias para que estas ficassem em segurança.
Nesta pandemia, gestores públicos de todos os níveis fazem questão de serem fotografados ao lado deles, ressaltam sua importância, fazem discursos em que destacam apoio e reconhecimento incondicionais. Porém, a realidade que não é mostrada e por vezes é escamoteada traz consigo uma disputa cujo centro é a pressão, o conchavo, a insensibilidade do poder público, a indiferença diante da injustiça e a busca do lucro e da máxima rentabilidade de um negócio chamado Saúde.
Falo das 2.471.153 pessoas – sendo 85% delas mulheres – que no Brasil integram uma categoria que, há pelo menos um ano, deixou de ser invisível aos olhos de todos nós e reúne enfermeiras e enfermeiros, além de técnicos e auxiliares de enfermagem. No Rio Grande do Sul, o contingente é formado por 134 mil trabalhadores e trabalhadoras das mais diversas idades e condição social.
Ao prestarmos um pouco mais de atenção ao que eles e elas nos dizem, vemos que a covid-19 não é a única batalha que esse verdadeiro exército de aguerridos profissionais precisa disputar. A luta, que não é de hoje, também o é por dignidade. Quem está na ponta do atendimento da saúde necessita, e isso é um direito legítimo, de um salário condizente, de jornada justa e condições dignas de trabalho. Apesar da gritante obviedade, tais necessidades há muito são ignoradas.
A regulamentação da profissão de enfermagem foi sancionada há 66 anos no Brasil, em 1955, pelo então presidente Eurico Gaspar Dutra. O que inicialmente parecia ser uma vitória logo mostrou que interesses outros se sobrepunham aos reais direitos desses trabalhadores. Os artigos da lei que descreviam o piso salarial e a jornada de trabalho de 30 horas, bandeiras justas já naquela época, foram vetados pelo então presidente. Passados 40 anos, em 1996, a luta nacional organizada pela categoria conseguiu aprovar no Congresso um projeto estabelecendo as 30 horas como jornada semanal. Mas assim como Dutra, o presidente na época, Fernando Henrique Cardoso, o vetou. E o fez a pedido – e à pressão – das mesmas forças econômicas que atuaram contra a proposta em 1955 e o fazem também hoje para que o PL 2564/2020, apresentado pelo senador Fabiano Contarato, que prevê o piso salarial e as 30 horas semanais, não seja levado à votação.
Como antes, temos novamente uma disputa cujos opositores não possuem as mesmas armas. De um lado, estão trabalhadores que escolheram para si uma profissão essencial para toda a sociedade. Do outro, poderosas entidades patronais cujos recursos financeiros, jurídicos e de lobby são infinitos se comparados com os primeiros. São associações e federações empresariais que representam de hospitais privados a empresas de planos de saúde e buscam impor seus interesses em detrimento do direito de quem trabalha por uma média salarial que não ultrapassa dois salários mínimos, no caso dos enfermeiros e enfermeiras com formação superior, e de um salário mínimo regional em se tratando, no RS, de técnicos e auxiliares, sendo que muitos hospitais sequer cumprem a regra.
Sim, enfermeiros e enfermeiras, técnicos e auxiliares aceitam as nossas palmas pelo que fazem e estão fazendo, mas também desejam a valorização concreta, uma vez que jornada de 30 horas e piso salarial também são uma questão de justiça que muitos outros profissionais de saúde já obtiveram, como os médicos (20h, desde 1961), fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais (30h, desde 1994) e assistentes sociais (30h, desde 2010).
Para se ter uma ideia da pressão contrária às lutas por mínimas conquistas daqueles que exercem a enfermagem, um simples projeto por mim apresentado no parlamento estadual está parado há 4 anos. Ele dispõe sobre as condições de descanso intrajornada desses profissionais durante o horário de trabalho e foi elaborado em conjunto com as entidades representativas da classe.
De uma vez por todas, é preciso que a sociedade se coloque ao lado de quem está na principal trincheira desta guerra, mas que, em troca, recebe desvalorização, baixa remuneração e uma sobrecarga desumana de trabalho. E para reforçar essa mobilização, nós criamos, na Assembleia Legislativa, a Frente Parlamentar em Defesa da Enfermagem, cuja principal bandeira hoje é a aprovação já do PL 2564/2020 e, consequentemente, da jornada de 30 horas e do piso salarial digno para a categoria. Não vamos parar de lutar até que os defensores da vida sejam verdadeiramente reconhecidos, pois ninguém vive só de aplausos.
* Artigo originalmente publicado no site www.claudemirpereira.com.br
(Imagem: Divulgação/Escola de Enfermagem da UFRGS)