Por VALDECI OLIVEIRA –
Ágatha Félix, morreu aos 8 anos no Conjunto de Favelas do Alemão, no Rio de Janeiro, a Cidade Maravilhosa. Ágatha foi uma das cinco crianças, todas negras, mortas no ano passado por bala perdida, um eufemismo criminoso que funciona como uma espécie de passaporte, um passe-livre para que não se chegue aos responsáveis. Oficialmente, suas vidas negras foram ceifadas em decorrência de confrontos – um acidente de trabalho – entre a polícia e criminosos.
Duas semanas atrás, foi a vez do menino João Pedro, que só tinha 14 anos. Ele foi alvejado pelas costas, dentro de sua casa, onde estava em isolamento social por conta da pandemia, por um tiro de fuzil, também disparado por um agente da lei que, segundo os órgãos oficiais, perseguia bandidos. João Pedro também era negro.
Ágatha e João Pedro estão junto com Jenifer, Kauê e Kauan, que estão ao lado de Amarildo, Evaldo, Luciano e de outros 5.995 negros e negras mortos pelas forças de segurança nos últimos dois anos, no Brasil, conforme dados do Atlas da Violência. É um percentual que beira 76% das vítimas de todas as ações policiais com vítimas no período citado.
Sim, vidas negras importam. Mais do que uma frase de efeito, um slogan ou uma hashtag nas redes sociais, ela é uma reação ao racismo enraizado em nossas estruturas públicas e privadas, não apenas do Brasil, pois essa chaga não é uma exclusividade nacional.
O assassinato de George Floyd por um policial branco de Minneapolis (EUA) chamou a atenção do mundo todo por conta da violência, da causa banal, recorrente e gravada em vídeo, que viralizou. Floyd, assim como Ághata e João Pedro, faz parte de uma lista interminável de nomes, hoje gravados em lápides pelo fato de serem negros e negras. Aqui, como lá, estamos diante de algo estrutural, impregnado no cotidiano e, por isso, não simples de ser superado. A criação de leis, e o cumprimento delas, que punam atos de racismo ou estipulem cotas no mercado de trabalho ou para o ingresso ao ensino superior são importantes, fundamentais até, para que se dê um passo à frente. Mas não são suficientes.
Enquanto a sociedade e suas instituições não admitirem que compactuam com atitudes racistas e preconceituosas, que aceitam essa modalidade de genocídio moderno em nome de um pseudo “combate à criminalidade”, de nada ou pouco adiantarão as legislações, por melhor intenção que tenham. É sempre importante lembrar que o Brasil foi a última nação a revogar a escravidão, que a nossa população carcerária é majoritariamente negra e que se você é jovem e negro tem mais do que o dobro de chance de ser assassinado.
Assim como temos a obrigação de defendermos uma cultura de paz como forma de estabelecermos relações civilizadas entre nós, temos de lutar contra a passividade, nossa e alheia, que de certa forma é parte responsável por este cenário execrável.
Os protestos que tomam conta de mais de cem cidades estadunidenses pelo 11º dia seguido – e que “roubaram” a cena da pandemia nos principais telejornais e canais de notícias 24 horas brasileiros -, colocou entre nós o debate acerca do motivo das reações por aqui serem bem diferentes daquelas na terra de Trump. Uma das hipóteses, bem fundamentada, está numa obra escrita na década de 1930 do século passado, pelo historiador negro americano Carter Woodson. Em resumo, os negros estadunidenses eram deseducados nas escolas, doutrinados a não se verem como um povo, “deslocados de sí próprios”. Por aqui, apesar da organização, esforço e reconhecida luta dos movimentos sociais negros, nossa população descendente de escravos talvez tenha esta dificuldade, já superada, em boa parte, pelos afro-americanos, que de certa forma tornaram a obra de Carter como seu livro de cabeceira. Fora isso, temos o agravante de que nossas estruturas perpetuam injustiças e fazem de tudo para que essa parcela significativa da sociedade continue à margem.
Basta ver a grita que foi a lei de cotas raciais, até hoje combatida por parcelas da nossa elite. Por aqui continuam impondo às comunidades negras os limites que podem atuar, colocam em xeque a legitimidade de sua religiosidade, lhe pagam salários baixos e os empurram para as periferias, longe dos seus olhos. E as nossas polícias não são menos que o reflexo de tudo isso.
Vidas negras importam. Como homem branco, por mais que me esforce, não consigo imaginar, em toda sua plenitude, a dor e a revolta causadas àqueles que sofrem por ações racistas.
O que tenho certeza é que não ser racista neste modelo não oficial de segregacionismo não é suficiente. Temos, como sociedade, que ser antirracistas convictos, cerrar fileiras com nossos irmãos e irmãs afrodescendentes, estarmos ombro a ombro na luta pela igualdade e contra a discriminação. Ou assim fazemos, olhando para dentro de nós, ou o nosso silêncio e passividade serão cúmplices desta verdadeira barbárie, desta ação desumana que faz desaparecer qualquer distância – ou diferença – que nos separa do que há de pior na humanidade.
Foto: Emerson Osasco (Reprodução/Twitter)
(Artigo publicado originalmente no site www.claudemirpereira.com.br)