Por VALDECI OLIVEIRA –
Tivesse Aldir Blanc criado, ao lado de João Bosco, apenas os versos da música “O Bêbado e o Equilibrista”, eternizada na voz de Elis Regina e que viria a se tornar uma espécie de símbolo não oficial da anistia, um retrato dos exilados pela ditadura militar que voltavam ao Brasil no final da década de 1970, já seria motivo suficiente para que seu nome batizasse a Lei Emergencial da Cultura (PL 1075/2020), que irá destinar R$ 3,6 bi para estados e municípios desenvolverem ações de fomento cultural. Aldir faleceu no último dia 4 de maio, aos 73 anos, depois de 24 dias lutando contra a Covid-19.
Apesar das críticas de setores ultraconservadores, para quem a cultura é algo que pode ser relegada a um segundo plano, é bom que se diga que esse setor da economia (sim, a cultura responde por algo próximo a 3% do PIB nacional, emprega mais de 5 milhões de pessoas e representa algo próximo a 6% de toda a força de trabalho ocupada no Brasil), além dos seus fundamentais predicados na formação da identidade social, foi o primeiro segmento a sofrer os impactos negativos das restrições à mobilidade impostos como ações necessárias para o combate da pandemia.
Muitas pessoas não se dão conta de que, assim como foi o primeiro, certamente será, por razões óbvias, a última área a voltar à normalidade. Ou alguém acredita que mesmo passando a pandemia as pessoas se sentirão confortáveis e seguras para frequentarem lugares com aglomerações, como shows, apresentações teatrais e afins?
A medida – que busca implementar ações cujo propósito é fornecer uma complementação mensal de renda no valor de um salário mínimo àqueles que trabalham informalmente e prestam serviço ao setor cultural – era uma reivindicação da classe artística, que se via diante da inação do governo federal para o setor, escancarada na inércia da agora ex-secretária de Cultura Regina Duarte. A proposta foi elaborada pela deputada Benedita da Silva (PT/RJ) e teve como relatora outra deputada carioca, Jandira Feghali (PCdoB). Aprovado pelos deputados, o projeto segue agora para apreciação do Senado.
Desde o início do governo Bolsonaro, a chamada economia criativa foi desprezada. Ainda na campanha à presidência, o capitão e seus seguidores demonizavam o setor, acusando-o, sem nenhum indício ou prova, de “mamar” em privilégios por meio da Lei Rouanet. Um discurso raso, mas que chega facilmente a segmentos alimentados pela ignorância, radicalizados pela polarização política e que estão sempre em busca do inimigo comum como forma de eleger culpados pelos problemas do país e por suas frustrações pessoais.
Chantagista e sem nenhum compromisso com a verdade, o bolsonarismo prometia uma devassa assim que assumisse o poder. Da mesma forma que a tal “caixa-preta” do BNDES não apareceu, os “privilégios” dos artistas caíram no esquecimento, simplesmente porque se tratavam de bravatas que emolduravam outra falácia, esta perigosa e em curso, nomeada de “guerra cultural”, em que é preciso destruir tudo o que vinha sendo feito e dar lugar ao que chamam de nova era.
Aliás, essa foi a tônica do antecessor de Regina no posto. Ficará para sempre registrado na lembrança do povo o vídeo em que Roberto Alvim fez um grosseiro plágio de trechos de um discurso de Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler. Nas palavras de Alvim, que selaram sua queda, “a arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa […] ou então não será nada”.
É um comportamento que tanto a psicologia como a ciência política explicam. A arte, por fazer pensar, questionar e, por princípio, ser livre de amarras, é sempre combatida por governos autoritários que querem decidir o que o povo pode e deve ouvir, ler e assistir. Mas, assim como em outros segmentos socais, o governo encontrou resistência e organização. E esse projeto de lei, que esperamos seja colocado em prática o mais breve possível, é sua resultante.
Emprestar o nome de um dos maiores compositores brasileiros a essa proposta é dar um tapa de luvas de pelica na face horrenda do obscurantismo, do atraso e da selvageria política. Aldir, era de uma sensibilidade estupenda, um leitor voraz, dono de uma técnica de juntar palavras e formar versos pouco vista na rica história da música popular brasileira. Foi um artesão do amor e da liberdade. Tudo o que esse governo despreza. Além do apoio aos trabalhadores da cultura, a Lei Aldir Blanc é uma resposta a tudo isso. E como diz o último verso de seu hino informal da anistia, “a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar”.
Foto: Fabricio Tadeu/ Divulgação