Artigo – Uma medalha contra o racismo e a discriminação

Por VALDECI OLIVEIRA

Para quem é branco é muito difícil dar conta da dimensão e imaginar – e principalmente sentir – a dor e a indignação que as diversas formas de racismo trazem consigo. Para muitos isso dificulta, inclusive, entender a real dimensão dessa verdadeira chaga que teima em permear a nossa sociedade, a última das nações ocidentais a abolir a escravidão. Uma chaga que, mesmo purgando em praça pública, continua aberta, sem o devido tratamento e cujo único resultado possível, além da imensa injustiça, é o semear de uma revolta que bate a nossa porta, que nos espreita em cada esquina, que toca em nosso ombro e avisa: chega, não é mais possível que a cor da pele de alguém a condene, a mate, a faça ganhar menos e a coloque à margem de todo processo social.

Mesmo que não alcancemos a real concretude da dor alheia, o fato de sermos seres humanos racionais deveria bastar para que nos déssemos conta de que, em pleno século XXI, o que vivemos e presenciamos na prática não passa de um simulacro de democracia racial num país que se utiliza do discurso do orgulho da sua miscigenação para encobrir sua verdadeira face da exclusão, que criminaliza milhões de homens, mulheres, velhos e crianças unicamente pelo fato de serem negros e negras.

Por isso, para sugerir o debate e homenagear uma figura pública que muito tem feito para denunciar e chamar a atenção sobre o racismo, principalmente o estrutural, foi com muito orgulho que sugeri a concessão da Medalha do Mérito Farroupilha ao ex-jogador e atual técnico de futebol Roger Machado Marques, entregue em 20 de dezembro.

Para tal, como deputado, me utilizei de uma prerrogativa prevista em nosso parlamento, que permite aos deputados e deputadas conceder uma única vez, no período de quatro anos de mandato, esta que é a honraria máxima do legislativo gaúcho. A distinção ao Roger foi aprovada por unanimidade pelos diferentes partidos, fato que não é muito comum nos dias polarizados e conflagrados que vivemos. E o foi não por ter sido um lateral-esquerdo consagrado, principalmente no meu Grêmio, ou por figurar entre os principais técnicos de futebol do país, conquistas que tanto engrandeceram o Rio Grande do Sul perante o Brasil e o exterior,

O fiz pela condição de Roger ser alguém que, de uma forma absolutamente natural, espontânea e legítima, conseguiu fazer com que uma boa parte da sociedade e opinião pública brasileiras refletissem sobre o racismo, o tamanho do preconceito no Brasil e o quanto estamos atrasados na tentativa de nos livrarmos dessa triste e infame mazela. E diante de tamanha humildade e consciência do homenageado, a honraria foi estendida a todos os homens e mulheres do Rio Grande e do Brasil que têm a coragem de se erguer contra a discriminação e o preconceito. Sim, coragem. Pois para defender uma pauta que não é simpática a muitos segmentos da sociedade é preciso firmeza, altivez e muita disposição para falar sobre um assunto que muitos não querem sequer ouvir.

E Roger o fez e o faz de forma clara, direta e simples. Em uma dessas ocasiões, durante uma entrevista coletiva, aproveitou os holofotes da grande mídia a ele direcionados e, sem meias palavras, falou sobre esse tema, que resultou em uma grande ação de popularização da luta antirracismo no país.

Provocado a falar sobre a questão, de maneira inteligente e calcada em informações irrefutáveis, tocou na ferida que precisa ser cutucada todos os dias, todas as horas, todos os minutos no Brasil, lembrando, entre outros aspectos, que os negros e negras, apesar de serem a metade da população, não é comum os vermos frequentando restaurantes, faculdades e até mesmo sendo técnicos de futebol.

Como também são raros os que se tornam vereadores, promotores, desembargadores, juízes, governadores e presidentes da República. Sou um dos 55 deputados e deputadas estaduais que integram a 55ª Legislatura da Assembleia do Rio Grande do Sul, onde nenhum é negro. E em toda a história do nosso parlamento, se conta nos dedos de uma mão os representantes afrobrasileiros que tiveram assento nas cadeiras do Legislativo estadual.

Uma prova a mais de que o preconceito no Brasil é estrutural, está institucionalizado, arraigado e, portanto, jamais pode ser subestimado, banalizado e muito menos negado. E muito menos no atual momento em que há um patente retrocesso em curso no país em relação às políticas públicas voltadas à promoção da igualdade racial, em que se observa um perigoso esvaziamento dos programas voltados à afirmação dos negros e das negras na nossa sociedade.

Símbolo maior dessa verdadeira insanidade é o fato do governo federal ter indicado para assumir como presidente da Fundação Cultural Palmares, uma das primeiras instituições públicas do país a trabalhar na preservação dos valores culturais, históricos, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira, um cidadão que angariou fama por ser um negro que fala, aos quatro cantos, que “o Brasil tem um racismo nutella”.

Uma indicação absurda e, ao mesmo tempo, provocativa à luta da comunidade negra que se somou ao grotesco episódio registrado na véspera do Dia da Consciência Negra deste ano, quando o deputado federal, membro de um partido de extrema direita de São Paulo, num somatório de ignorância e violência, rasgou uma peça pertencente a uma exposição alusiva à essa data simbólica, em pleno Congresso Nacional.

Os dias atuais, inegavelmente, são tempos duros para quem milita na luta social, por igualdade, por uma sociedade livre da discriminação e do preconceito. Como bem disse o Roger, em tempos assim é fundamental ir além do mero repúdio. É fundamental ser protagonista, antirracista e ser antipreconceito.

Aos que negam ou minimizam esse verdadeiro crime, destaco o que escreveu Pai Rodnei De Oxossi, antropólogo e doutor em Ciências Sociais que há mais de 20 anos pesquisa relações raciais, racismo e religiões de matriz africana.  Para ele, “o fato do racismo não ter sido institucionalizado oficialmente no Brasil, com leis ou regimes de segregação, como ocorreu, por exemplo na África do Sul e nos Estados Unidos no passado recente, gerou uma falácia que ainda perdura, a de que não existe racismo no nosso país”.

E esse mito é tão forte no nosso imaginário que, muitas vezes, não somos capazes sequer de definir situações de racismo de forma objetiva, pois, quando inseridos numa dada estrutura, nossa tendência é reproduzir aquilo que essa estrutura suscita. Reconhecer que fazemos parte de uma sociedade estruturalmente racista é uma condição para a sua desconstrução.

Caso contrário continuaremos a ostentar índices como os que apontam que 50,7% das crianças brasileiras de até 5 anos que morreram por doenças evitáveis, em 2017, eram pretas ou pardas, segundo o Ministério da Saúde. Ou que o analfabetismo entre as crianças pretas e pardas é de 9,1%, quase três vezes maior que o registrado entre as brancas, segundo o IBGE. Ou ainda que a taxa de homicídios entre os jovens negros e pardos, entre 15 e 29 anos, é de 98,5 casos por 100 mil habitantes, contra 34 casos em se tratando de jovens brancos.

Quando analisamos o desemprego, a questão racial fica ainda mais evidente. Pretos ou pardos somam 64% da população desocupada e 66% da população subutilizada do país. O rendimento médio mensal das pessoas brancas ocupadas foi de R$ 2,8 mil no ano passado, 73,9% superior ao da população preta ou parda que, em média, obteve R$ 1,6 mil. Portanto, racismo existe, ofende, empobrece, causa desigualdade e mata. E a luta contra essa irracionalidade tem de ser permanente. Por isso, a Assembleia Legislativa do RS está inserida firmemente neste propósito. Tenho a satisfação de ser, desde 2014, o coordenador da Frente Parlamentar de Combate ao Racismo, à Homofobia e a outras formas correlatas de discriminação, a qual atua muito em favor dessa luta, assim como outras frentes instaladas no Parlamento que também cerram fileiras nesse mesmo propósito.

Finalizo este artigo, o último de 2019, com a histórica frase de Angela Davis, professora e filósofa e ativista norte-americana: “Em uma sociedade racista, não ser racista não é o bastante. Temos que ser antirracistas”.