Artigo: Troca-se intolerância por cultura de paz

Por VALDECI OLIVEIRA 

Desde 2013, ao menos, o Brasil vem passando por momentos e vivenciado fatos que, em maior ou menor grau, com pesos e ações distintas, tiveram como resultado a conjuntura que vivenciamos hoje. Levando-se em conta que trata-se ainda de um fenômeno social inserido em um processo histórico, ele será, sem dúvida, melhor analisado no futuro, com a devida e necessária distância temporal, por pensadores, historiadores, cientistas políticos, psicanalistas, entre outros.

Mas dentro deste verdadeiro turbilhão político pelo qual passamos nos últimos anos, tem um ponto que me chama atenção, causa estranhamento, muitas vezes perplexidade e sempre repulsa: a intolerância.

A intolerância, segundo a primeira explicação que aparece num serviço de buscas pela internet, “é uma atitude mental caracterizada pela falta de habilidade ou vontade em reconhecer e respeitar diferenças em crenças e opiniões. Num sentido político e social, intolerância” é a ausência de disposição para aceitar pessoas com pontos de vista diferentes.”

A polarização política, termo que vem sendo empregado para explicar sinteticamente o atual momento da vida brasileira, fez com que tirássemos de baixo do tapete, escancarássemos em praça pública, disséssemos na televisão e publicássemos nas nossas redes sociais que somos ou estamos em uma sociedade de intolerantes.

As notícias, alguns programas de tv, as postagens, as tuitadas, os grupos de Whatspp e as posturas de alguns líderes e governantes nos mostram que ausência de disposição para aceitar pessoas com pontos de vista diferentes faz com que relativizemos o preconceito racial, religioso, o machismo, a misoginia e até mesmo a tortura. Faz com que se torne aceitável – e porque não, aplicável – que todos esses conceitos, ou os frutos oriundos destes, sejam, sem nenhuma cerimônia ou pudor, direcionados para aqueles que entendemos como nossos inimigos, e não alguém que apenas pensa diferente ou está em campo político oposto.

Até tomar corpo e não mais causar estranhamento à sociedade, incluindo setores do Estado responsáveis justamente por fiscalizar e aplicar a lei, a intolerância se manifesta por pequenas práticas, comentários, piadas e posturas – todas inocente e hipocritamente caracterizadas como politicamente incorretas e até mesmo inofensivas. Pior ainda, como liberdade de expressão.

Com a desculpa de que é da boca para fora, a intolerância faz com que autoridades enalteçam em público torturadores ou implicitamente a morte de seus oponentes enviando-os para “a ponta da praia”, local no Rio de Janeiro que abriga uma base da Marinha na qual, nos “anos de chumbo”, os opositores à ditadura militar eram torturados e executados.

A intolerância é irmã gêmea do feminicídio, que faz com que o Brasil fique atrás apenas de países como El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia em número de casos de assassinato, cujas características levantadas em investigações policiais apontam que as mortes ocorreram pelo fato das vítimas serem mulheres.

A intolerância resulta em casos como o do juiz de futebol gaúcho Márcio Chagas, que, entre os inúmeros xingamentos de ordem racista recebidos durante a sua carreira, pelo simples e natural fato de ser negro, teve o carro amassado e “adornado” com cascas de banana colocadas sobre a lataria e no cano de escapamento, na saída de um jogo que apitara. Assim como foi e é com Chagas, isso acontece cotidianamente com milhões de homens, mulheres, jovens, crianças e idosos que não são brancos. A diferença é só a forma escolhida de discriminar, ora com bananas, ora com gritos de macacos, ora com “brincadeiras inocentes”.

A intolerância fez ainda com que médicos e médicas cubanas, que só estavam aqui no país porque outros profissionais, brasileiros ou estrangeiros, não ocuparam as vagas oferecidas no Programa Mais Médicos, fossem praticamente expulsos e chamados por autoridades governamentais, sem provas ou indícios, de “células de guerrilhas e doutrinação”.

Mesmo na frieza dos números é possível detectar a “mão” da intolerância nas mais de 4,4 mil mortes registradas no país entre 2011 e 2018 de LGBTs, cujo “crime” cometido é sua sexualidade.

E vestida com o falso véu da pureza e da bondade, a intolerância também atinge à religiosidade, fazendo com que rituais e espaços de manifestação da fé fora do espectro judaico-cristão, notadamente as igrejas de matriz africana, sejam perseguidos e fechados, muitas vezes por força de lei.

A banalização da intolerância também faz vítimas junto àqueles cuja militância é voltada à proteção do meio ambiente, das terras, florestas e rios, ativismo cujo foco se dá em embates junto à mineradoras, madeireiras e empresas do setor de alimentos. Entre 2017 e 2018, foram perto de 90 ativistas assassinados no Brasil. Como não recordar das dolorosas perdas de Chico Mendes e da religioso Irmã Dorothy Stang.

A intolerância subverte inclusive nossa percepção de realidade, quando nos coloca contra quem luta pelos direitos humanos, pela cultura, pelo uso social da terra, pelo direito dos mais pobres terem acesso à universidade ou a uma renda mínima.

A lista das vítimas da intolerância é grande, é uma chaga que vem deixando o tecido social brasileiro carcomido, vem rompendo as regras mais básicas do nosso contrato social, não aquele registrado em cartório, com firma reconhecida. Mas aquele que faz com que tenhamos a garantia da civilidade, da convivência e do respeito.

Precisamos urgentemente buscar, no diálogo e na concertação política entre sociedade e instituições dos Poderes da República, os rumos a uma sociedade que prime pelo civilizatório e por uma cultura de paz, em que as chagas abertas pela intolerância sejam tratadas, curadas, removidas. Que sua banalização dê lugar ao senso crítico e que ela seja vista, de forma inquestionável, como inaceitável.

Foto: Fotos Públicas/Léo Pinheiro