Artigo: Que tal mexerem com os super-ricos e não com a Farmácia Popular?

Por VALDECI OLIVEIRA

Se alguém ainda não tinha certeza sobre a falta de traquejo e disposição do governo federal em atuar pela população menos favorecida, agora não tem mais. Novamente o falso dilema entre investimentos sociais e controle dos gastos públicos é colocado no centro do debate pela equipe econômica como condição para a permanência do auxílio emergencial até o final do ano e para a reformulação do Bolsa Família. E entre as tesouradas em estudo está a Farmácia Popular, que o ministro Paulo Guedes considera ineficiente e desnecessária. Pura chantagem que não leva em conta a necessidade de milhões de brasileiros e brasileiras em ter acesso a medicamentos sem custo ou com descontos significativos.

Na visão ultraliberal, uma ação concreta de saúde pública como a Farmácia Popular, que só no ano passado atendeu mais de 21 milhões de pessoas, precisa ser descartada, mesmo que isso represente aumento de gastos no já apertado orçamento de aposentados ou total restrição aos mais pobres.

Em abril do ano passado, levantamento feito junto ao Ministério da Saúde e à Fiocruz mostrou que o programa estava com investimentos 27% menores, o mais baixo índice desde 2015, o que teria deixado 7 milhões de pessoas sem atendimento entre 2017 e 2019, além do fechamento de 400 estabelecimentos públicos administradas pelo governo e que ofereciam 125 medicamentos – sendo 18 totalmente gratuitos- em localidades carentes. A obra foi de Michel Temer, cuja receita, com viés mais radical, vem sendo seguida pelo atual presidente.

Criadas no primeiro mandato do ex-presidente Lula, as Farmácias Populares tinham a oferta e o acesso a medicamentos como prioridades. Por acreditar que saúde é um direito inalienável, buscou-se distribuir gratuitamente remédios para o tratamento de doenças crônicas mais comuns entre a população, não importando a classe social. Até sofrer o injusto golpe jurídico-parlamentar, a gestão da ex-presidenta Dilma tinha credenciado um total de 34,6 mil unidades espalhadas por todo o Brasil. Eu mesmo tive o orgulho de, na minha gestão como prefeito de Santa Maria, inaugurar uma unidade da Farmácia Popular no município.

Estudo feito pelo Ministério da Saúde e pelo IBGE em 2018 mostrou que doenças como hipertensão, diabetes, dislipidemia (distúrbio que estimular a ocorrência de doenças cardiovasculares e cerebrovasculares) e depressão são responsáveis por mais de 72% das causas de mortes no Brasil. Outro levantamento, esse feito em 34 nações que integram a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mostrou que para cada dólar investido pelos governos junto aos seus países na prevenção ou no tratamento adequado, cerca de 4 dólares poderiam ser economizados ou realocados.

A contradição do atual governo é explícita. Documento oficial elaborado para orientar as ações da pasta da Saúde afirma que “evidências demonstraram que o programa reduziu as internações hospitalares e mortalidade em relação à hipertensão e diabetes”. Acabar com o programa, em meio a uma pandemia de Covid-19, é sacrificar ainda mais a já difícil vida de milhões de pessoas carentes. É praticar o chamado darwinismo social, onde apenas os mais fortes e aptos sobrevivem.

Dizer que faltam recursos é ignorar, por exemplo, que o orçamento das forças armadas deste ano foi 81% de tudo o que foi destinado para a Saúde. E, para o ano que vem, terá perto de R$ 6 bi a mais do que a Educação. São escolhas políticas que demonstram as reais prioridades da gestão federal.

Sustentar que há escassez de dinheiro é fazer vista grossa à venda de uma carteira de crédito do Banco do Brasil no valor de R$ 3 bi por R$ 370 milhões ao banco BTG Pactual, que por sinal foi fundado pelo ministro Paulo Guedes. Dizer que não tem como manter programas sociais importantes é esquecer que mais de R$ 40 bi – por inépcia, má gestão e falta de transparência – foram pagos indevidamente a quem não precisava do auxílio emergencial.

Definitivamente não dá para aceitar a desculpa de que a Farmácia Popular é um dos empecilhos à criação ou ampliação de mecanismos de proteção social no Brasil. A sugestão vai de novo para o nosso presidente e para o ministro Paulo Guedes: em vez de mexer nos poucos programas que ainda chegam na população vulnerável desse país, mexa, tribute e cobre impostos mais altos (o que é justo) dos super-ricos e do mercado financeiro deste país. O alvo é o topo da pirâmide social, não a base.

(Artigo originalmente publicado no site www.claudemirpereira.com.br)