Artigo – Precisa morrer um parente ou um amigo para a conscientização surgir?

Por VALDECI OLIVEIRA

Num futuro não muito distante, quando nossos filhos e netos ouvirem a história desta pandemia que estamos passando, não faltarão passagens difíceis de acreditar. Ouvirão de nós que, apesar dos nítidos avisos, muitos não levaram a sério o perigo e trataram algo fatal como uma “gripezinha”. Ouvirão que parte da sociedade elegeu a economia como sendo mais importante que a vida e que, em pleno século 21, muitos morreram por falta de leitos e respiradores.

Nesse futuro, talvez sequer entendam tamanha soma de ações erráticas tomadas diante de tão claros avisos feito por cientistas e pesquisadores. No momento em que escrevo este artigo, o Brasil chegou a triste marca de 125 mil casos confirmados pelo contágio e mais de 8 mil homens e mulheres mortos. Muito provável que nos próximos dois dias essa marca alcance o trágico patamar das dez mil vidas ceifadas.

Escrevo num momento em que quatro estados brasileiros e oito grandes capitais estão próximas de verem seus leitos de UTI saturados, e um estado, o do Amazonas, já registra completo colapso. Escrevo num momento em que os técnicos do Ministério da Saúde já apontam o vizinho Santa Catarina como o próximo provável epicentro da doença. Lembremos do vídeo que viralizou na internet com imagens da abertura de um shopping em Blumenau, com as pessoas entrando avidamente em suas dependências, sendo aplaudidas por lojistas e recebidas com música ao vivo. Até aquele momento, a cidade tinha 79 casos registrados. No domingo passado, eram 224, e continua crescendo.  Após a medida do governador Carlos Moisés da Silva, que incluiu a liberação de templos, igrejas e praticamente todas as atividades comerciais, os catarinenses viram a estatística de contágio passar de mil casos para 2,5 mil em 10 dias.

E mesmo assim, diante do quadro caótico, em que nos faltam muitas respostas, somos obrigados a conviver com o negacionismo, não só de autoridades do governo federal, mas de lideranças políticas aqui do nosso estado. São lideranças que ainda teimam em ir às redes sociais e dar entrevistas para afirmar que a quarentena é uma ficção. São os mesmos que diziam, semanas atrás, que a pandemia não seria pior que a epidemia da H1N1, que levou pouco mais de mil pessoas a óbito. Estavam errados e continuam errados ao insistir na comparação e evolução da Covid-19 com o vírus da gripe suína. A única proximidade entre ambos é que se tratam de um vírus. E há uma importante diferença que reside no fato de que para o segundo há vacina.

É contra isso que precisamos lutar. Precisamos alertar que o perigo mora logo ali na esquina e que não será com bandeirinhas coloridas que iremos controlar a disseminação do vírus como querem fazer em nosso estado. Hoje temos regiões gaúchas com altos focos de contaminação comunitária, e o máximo que recebem é uma cor indicando haver necessidade de atenção especial, como se isso fosse impedir que pessoas se deslocassem para municípios vizinhos ou transitassem pelo Rio Grande a dentro. Se as chamadas curvas de contaminação são menos acentuadas no RS, quando comparadas a São Paulo ou Rio de Janeiro, não significa que estamos livres de chegar a uma situação parecida, principalmente com a chegada do nosso rigoroso inverno. Se continuarmos a afrouxar as corretas medidas tomadas inicialmente (estas provavelmente as responsáveis por terem segurado a alta da curva), e flexibilizadas a partir da pressão de segmentos econômicos, será apenas uma questão de tempo.

Também será uma questão de tempo que mais pessoas saiam às ruas em busca de um sustento digno se o governo gaúcho não tomar medidas efetivas para a concessão da hoje amplamente aceita renda básica emergencial em complementação aos R$ 600 concedidos pelo governo federal. Aliás, hoje temos um exército calculado em mais de 26 milhões de pessoas que, mesmo necessitando, não conseguiram um centavo sequer dessa importante ajuda para sua sobrevivência. Muitas delas morando aqui, em solo gaúcho, ao nosso lado.

Não desenvolvemos um remédio, ainda não se descobriu uma vacina, estamos lutando contra o tempo. E as únicas medidas realmente eficazes é ficarmos em casa, é o governo tomar ações de contenção, é proporcionar a testagem da população com alguma suspeita de contágio, é fortalecer a rede pública de saúde, é assegurar a segurança dos profissionais que estão na linha de frente desta guerra e garantir a sobrevivência dos mais vulneráveis.

O resto é irracionalidade, é irresponsabilidade. É deixar que posturas dignas da idade média prevaleçam sobre as luzes do conhecimento, é deixar a própria sorte milhares de pessoas que dependem exclusivamente do atendimento público. Será que precisa um parente, um amigo ou um vizinho nosso morrer para que a necessária conscientização, enfim, surja? O relaxamento das medidas de isolamento causadas pela pressão do negacionismo e pela avidez do lucro mostram a veracidade da frase dita por um senador americano: “numa guerra, a primeira vítima é sempre a verdade”. E junto dela, nesse caso atual, poderão estar milhares de brasileiros inocentes.